Comparações são realmente odiosas e não foi outro senão o próprio Bernard Cornwell que, certa feita, me disse isso. Contudo, ao terminar a leitura do primeiro volume da trilogia “Alexándros” de Valerio Massimo Manfredi, intitulado “O sonho de Olympias”, não pela última vez, tive a sensação de que Bernard Cornwell teria escrito aquele livro de forma muito parecida. Ou seja, o estilo de Valerio Massimo Manfredi me fez lembrar os escritos de Cornwell. Claro que Manfredi possui seu próprio estilo, excelente por sinal, porém a forma com que este italiano demonstra se preocupar com o aspecto historiográfico, fazendo questão de registrar as alterações a que foi obrigado em sua adaptação, lembra bastante o que o seu colega inglês faz em seus romances históricos.
Antes de avançar, devo explicar que não há nenhum equívoco no que disse no primeiro parágrafo: sim, aquilo é a mais absoluta verdade. Bernard Cornwell, dentre outras coisas, de fato, me disse : “[...] comparisons are odious!” Na ocasião, eu havia perguntado ao autor, por meio de um campo próprio em seu website oficial, quem era o melhor dentre três dos seus heróis mais famosos e o autor de “Crônicas de Arthur”, com a grande gentileza e simpatia que reconhecidamente lhe são peculiares, não me deixou sem reposta, fazendo constar que eles, os heróis, eram equivalentes: “Oh, they’re equals”.
A trilogia na versão americana
Com efeito, apesar de conhecer bem menos a obra de Manfredi, talvez, afinal, não seja nenhum absurdo supor que seja equivalente à obra do escritor inglês. Nada obstante, feito o devido esclarecimento, tornemos a tratar apenas da trilogia de Valerio Massimo Manfredi. A meu sentir, o primeiro acerto do autor foi na escolha da estória que se disporia a contar: a vida de Alexandre, o Grande, certamente é uma das maiores aventuras de todos os tempos e vem inspirando a humanidade e os corações dos homens, grandes e pequenos, desde que ele, então tão jovem, morreu em circunstâncias misteriosas aos trinta e dois anos de idade na Babilônia, após haver passado por este mundo como uma força devastadora. Alexandre, com seu ascendente e herói Aquiles parece ter escolhido espiar as dores de uma existência curta e gloriosa em detrimento de uma vida longa e ignominiosa, mas para mim, que hoje tenho 33 anos, não há como não lamentar o fim precoce do grande conquistador.
A grande aventura de Alexandre na língua de Goethe
Outro acerto de Manfredi foi a forma com que decidiu narrar essa grande aventura. O autor cuidou em não simplesmente retirar o elemento sobrenatural da estória e pintar um Alexandre demasiado humano, como faria um cético, mas tratou da questão com zelo, sem remeter sua narrativa às paragens da fantasia, porém preservando os aspectos místicos e míticos, que são componentes indissociáveis dessa grande aventura do homem ocidental (grego). Como se sabe, a vida do grande monarca macedônio foi contada por Plutarco com bastante sobriedade, mas nem todos os biógrafos de Alexandre puderam separar os fatos do mito que se criou em torno de sua personalidade. Estima-se que o próprio Alexandre, que encarregou Calístenes, o sobrinho do seu preceptor Aristóteles, de acompanhá-lo ao oriente para registrar os mínimos detalhes da campanha, cuidou para que o elemento sobrenatural estivesse presente na narrativa. Sua mãe, Olympias, convenientemente espalhou rumores de uma suposta ascendência divina de Alexandre, supondo que tal ligação favorecesse o filho na ascensão ao trono da macedônia. A questão se torna mais profunda quando Alexandre é recebido com um deus no Egito e toma consciência que é assim – como um deus – que deve aparecer diante seus novos súditos orientais, que especialmente nesse ponto diferem muito dos gregos, haja vista estarem habituados a servir soberanos de linhagem reconhecidamente divina. Manfredi, portanto, ilustra seu romance com todas as lendas conhecidas, mas, com habilidade, as apresenta num viés capaz de agradar místicos e céticos.
Não bastasse, é impossível não se tornar cativo dos grandes personagens da narrativa, o próprio Alexandre, Aristóteles, Felipe, Ptolomeu, Dário, Perdicas, Heféstion, Cratero, Parmênio, Diógenes, Platão, Demóstenes, dentre outros, cada um deles com maior ou menor participação no enredo. A leitura gera a familiaridade e, no fim das contas, é como estar acompanhado desses grandes homens. Até o cavalo de Alexandre, Bucéfalo, e o seu cão, Péritas, o molosso, merecem tal destaque no romance, que acabam por cativar tanto quanto todos os outros.
As edições da Pérsia e da Macedônia, onde Alexandre reinou
Todavia, é bem verdade que o autor não se preocupou em inserir personagens femininas de relevo. Às mulheres Manfredi dispensou papel secundário. Elas são todas coadjuvantes. Nem mesmo à própria Olympias, mãe do conquistador, o autor garantiu participação decisiva. Imagino que, cioso, o autor tenha deixado escapar a oportunidade de corrigir uma injustiça história e decidiu manter a mulher no exato papel que representou na Grécia antiga, pois é sabido que, nessa época, elas ocuparam posição secundária na sociedade e foram invariavelmente condenadas à submissão, à obediência.
Por outro lado, um dos pontos altos são as descrições batalhas travadas por Alexandre: Queronéia, Granico, o cerco de Tiro, Isso, Gaugamela, Hidaspes, etc. Por mais que a fama dessas batalhas as preceda, quando o romance atinge um desses momentos de definição, o autor sabe empregar o ritmo certo na narrativa. Ele prende o leitor como quem estica uma linha indefinidamente até que a tensão se torne insuportável, fazendo o leitor, por vezes, segurar o ar nos pulmões nos instantes decisivos, por saber que a linha se romperá a qualquer momento e também por ignorar o desfecho de cada cena. Essa qualidade da narrativa fez com que o livro se tornasse um companheiro contumaz, pois não conseguia me separar dele antes de saber como Manfredi encerraria cada um daqueles episódios decisivos. Assim, para mim se tornou familiar imaginar os sons do grande Tambor de Queronéia e do tropel dos cascos dos cavalos da Turma de Alexandre.
Duas belas edições em língua espanhola: México e Espanha
No website oficial do autor, é possível verificar que a trilogia foi editada em mais de trinta países e que a capa da edição brasileira é muito parecida com a que foi utilizada em muitos países, inclusive nas versões grega e macedônia, respectivamente das editoras Livani e Aea Publication.
O romance na língua de Voltaire
No total, a versão brasileira do romance passa das mil páginas, bem divididas nos três volumes: (i) “O sonho de Olympias”; (ii) “As areias de Amon”; e (iii) “Os confins do mundo”, lançados pela editora Rocco. Os volumes chegaram às minhas mãos graças a uma promoção quase inacreditável de um conhecido site de compras na internet, que ainda vende os três volumes por menos da metade do valor de mercado de apenas um deles, mas confesso que os livros já haviam passado pelas minhas mãos diversas vezes em muitas livrarias que visitei. Ele era aquele tipo de livro que eu segurava nas mãos e tinha a sensação de que gostaria de ler, mas acabava optando por outro título, pois a edição da Rocco não era nenhum primor e mesmo assim o preço era bem elevado. “Qualquer dia desses, preciso me lembrar de procurá-lo em um sebo” era o que eu sempre pensava. Hoje, após a leitura, quase me arrependo de não ter confiado mais em minha intuição (aquele tipo de vibração que um livro não lido e desconhecido passa durante o folhear, instantes antes de devolvê-lo à estante), pois, seguramente, o investimento, mesmo com o valor cheio, teria valido muito a pena.
Finda a leitura, encerrada a grande campanha, da Macedênia à Índia, com um pouco de concentração e sem nenhum exagero, ainda sou capaz de, lembrando desta grande aventura, fechar os olhos e ouvir o rufar do grande Tambor de Queronéia.