Novas de Majabigwaduce
A História é uma musa caprichosa e a fama é sua filha injusta.
Bernard Cornwell
Acabo de regressar de Castine que fica dentro do Condado de Hancock no glorioso estado do Maine, por sua vez localizado na região da Nova Inglaterra, no extremo nordeste dos Estados Unidos. O passeio foi curto, mas muito interessante: notei que um desavisado qualquer, subindo pela Wadsworth Cove Road, a partir da Angra de Wadsworth (Wadsworth Cove),poderia ignorar que ao passar pelas duas curvas fechadas, primeiro à esquerda,depois à direita, na verdade estaria contornando a face oeste do Forte George e, assim, se aproximando mais da fortificação do que os rebeldes jamais puderam fazer em 1799.
Seguindo pela Wadsworth Cove Road, deixando para trás o forte que há mais de 200 anos foi extraído da terra daquelas plagas pelo valoroso General McLean e batizado em homenagem a um monarca louco, virei à direita passando rapidamente pela perpendicular Battle Av. e novamente à esquerda para desembocar na Pleasant Street e seguir em direção à CastineHarbor singrando um dos orgulhos da região, a Maine Maritime Academy. À direita deparei-me com o Ritchie Field, o campo de football da academia e lembrei-me que, hoje em dia, olhando-se a região de cima, é muito mais fácil e natural localizar esse campo do que o velho forte, que só aparece após um meticuloso esquadrinhamento.
Por apego à precisão é preciso confessar que sequer levantei da cadeira. Hoje em dia serviços do Google como o Street View, Maps e o Earth possibilitam a qualquer um com acesso à internet semelhante experiência, que não deixa de ser assombrosa e fascinante. Contudo, este escrito é para relatar outra viagem: a real, a aventura na Baia de Penobscot, quando Castine ainda era conhecida pelo singelo nome de Majabigwaduce (Bagaduce, para os íntimos), quando ainda não havia o estado do Maine e toda aquela região pertencia a Massachusetts. Essa viagem foi-me proporcionada lendo as quase quinhentas páginas na edição brasileira de O Forte, de Bernard Cornwell. Sim, foi sem dúvida a aventura literária que inspirou a aludida exploração virtual daquelas paragens da Nova Inglaterra e muitas outras pesquisas.
Capas de edições americanas e a inglesa ao centro |
Em 1799, quando se passa o romance de Cornwell, os malditos ingleses se instalaram na península de Majabigwaduce e os malditos rebeldes americanos reuniram a maior frota naval da Revolução Americana para chutar os traseiros reais dos casacas vermelhas do território americano. O resultado foi desastroso para os yankees e figurou como o maior fracasso da Marinha estadunidense até os japoneses proporcionarem um ainda maior, em Pearl Harbor, em dezembro de 1941. Em uma entrevista concedida nos Estados Unidos, objetivando a promoção do livro, o próprio Cornwell não escondeu nada e, portanto, considerei bastante curioso o fato da sinopse que acompanha a edição brasileira tentar fazer um suspense sobre o desfecho da Expedição de Penobscot (The Expedition to the Penobscot). Ora, trata-se de um livro de Cornwell e não de um filme de Tarantino. Lembro bem de ter vibrado em Bastardos Inglorius, quando Tarantino, em sua pequena vingança, fez o Füher morrer metralhado em um teatro francês, mas quando se trata de Bernard Cornwell o que você pode esperar é um grande apego aos fatos e registros tais como constam nas páginas da historiografia.
É de se ver que O Forte possui grandes personagens. Pelo lado americano, merecem destaque Peleg Wadsworth, Paul Revere e o valoroso Major Welch of the marines. Por outro lado, os casacas vermelhas bem se fazem representar por John Moore e pelo general escocês Francis McLean. Um fato interessante é que Cornwell, diplomático, transita pelos dois lados da história, o americano e o inglês, sem eleger mocinhos e bandidos. Essa ausência de partidarismo do autor, um inglês que vive os EUA, acrescenta credibilidade à obra, sem despertar ou acirrar velhas rivalidades. Fato raro nos livros de Cornwell, useiro e vezeiro em narrar suas histórias do ponto de vista inglês, sem esconder seus ressentimentos contra os franceses (os sapos, os bastardos comedores de lesma), por exemplo. Em O Forte, são os desgraçados dos americanos lutando contra os malditos ingleses e, enquanto o foco é transferido de um grupo ao outro, durante a leitura, me surpreendi aderindo à causa da liberdade dos rebeldes, contra os malditos súditos do rei lunático da pérfida Albion, mas Cornwell manteve-se equânime. Estimo que alguém que não conhecesse Cornwell, poderia supor que ele é um autor suíço, tamanha é a sua neutralidade.
George III, o chefe de todos os casacas vermelhas |
Um dos grandes desafios de Cornwell ao pisar nesse reduto intocável da História da Revolução Americana, “sacred territory” em suas próprias palavras, foi trazer à tona uma história que os americanos fizeram questão de esquecer. Afinal, porque perderiam tempo falando do insucesso da Expedição de Penobscot quando havia tanto a se falar sobre Bunker Hill e Saragota, por exemplo? Ainda assim, Cornwell narrou a tragédia e fez questão de revelar um comportamento humano, demasiado humano, de um dos maiores heróis patriotas, Paul Revere.
Paul Revere |
Pelo visto, Revere não deve sua fama e sua belíssima estátua equestre em Boston ao seu desempenho em Majabigwaduce em 1799. Por uma grande ironia do destino o status de Revere se deve ao neto de um dos homens que, talvez, mais tivesse motivos para censurá-lo, o general Peleg Wadsworth.O seu neto, Henry Wadsworth Longfellow, guindou Revere ao olimpo dos grandes heróis patriotas ao dar à luz o célebre poema Paul Revere’s Ride, cujos primeiros versos soam assim:
Listen, my children, and you shall hear Of the midnight ride of Paul Revere, On the eighteenth of April in Seventy-five; Hardly a man is now alive Whore members that famous day and year.
Prestem atenção, meus filhos, e vocês ouvirão contar sobre a cavalgada à meia-noite de Paul Revere, no dia dezoito de abril de mil setecentos e setenta e cinco. Dificilmente existe alguém, ainda vivo, que se lembre deste famoso dia e ano.
Sir John Moore |
Naturalmente, não é de hoje que os grandes escritores insculpem indelevelmente os ídolos no imaginário popular. Afinal, o que seria de Aquiles sem Homero? De Alexandre sem Calístenes, de Napoleão sem Victor Hugo, sem Byron, sem Tolstói? Em todo caso a narrativa de Cornwell desconstrói a lenda forjada por Longfellow até mesmo em relação à cavalgada noturna do herói, de Boston a Lexington, pois não deixa de relatar que Revere sequer levou a cabo sua aventura revolucionária, por certo que foi capturado pelos ingleses e logo depois liberado incólume, conquanto destituído de seu cavalo. Na seção de respostas aos leitores de seu site oficial, com a diligência e a simpatia de estilo, ao ser questionado sobre o novo perfil de Paul Revere, que pintou em O Forte, Bernard Cornwell afirmou que tudo que foi dito sobre o patriota no livro tem pelo menos duas fontes. Ele sintetiza:
He was a fervent patriot, a great metal-worker, a successful businessman, a loving father, but he was also quarrelsome, resentful of orders,and definitely not cut out for a soldier's life!
Em tradução livre:
Ele era um patriota fervoroso, um grande metalúrgico, um empresário de sucesso, um pai amoroso, mas também era brigão, se ressentia das ordens recebidas, e definitivamente não foi talhado para a vida de um soldado!
É possível, inclusive, encontrar-se uma ligação entre todos esses eventos e o Brasil, tênue, é verdade, mas fruto da pesquisa e do interesse que o livro despertou: Longfellow, o neto do general Peleg Wadsworth, autor da ode aos feitos de Paul Revere, era um dileto amigo de D. Pedro II, cognominado o Magnânimo, conforme atestado pelo Volume 4, Número 2 da Longfellow House Bulletin que relata a longa correspondência trocada entre o Imperador da Casa de Bragança e o Poeta no século XIX.
Mapa extraído de uma edição americana de O Forte |
Nada obstante, Cornwell especializou-se em fazer poesia de outra maneira: sua métrica é rasgada no papel em tintas rubras de sangue. Em O Forte as descrições das refregas e escaramuças são intensas e dramáticas. Tanto que quando cheguei à tradicional Nota Histórica e soube do número estimado de baixas do evento, considerei que foram muito poucas, dado as descrições sangrentas e vívidas do livro. Os canhonaços, salvas de metralha, saraivadas de mosquetes e as baionetas sangrentas pintadas por Cornwell fizera-me imaginar um número muito maior de mortes de ambos os lados.
Por fim, devo consignar que me foi impossível não pensar em Sharpe. Naquele mesmo ano, 1799, como cediço, o recruta Richard Sharpe estava servindo na Índia, cerrando fileiras sob o comando de Arthur Welesley na expedição encetada para derrubar o Sultão Tipu. Conforme se vê em O Forte, outro grande guerreiro também iniciava sua carreira em 1799, o então jovem tenente John Moore quea cabou por se tornar um grande personagem na versão romanceada de Bernard Cornwell. Imagino que Sharpe teria gostado muito de conhecer Moore, um oficial capaz de disparar um mosquete cinco vezes em menos de um minuto, mas a verdade é que Moore morreu na Batalha de Corunha em janeiro de 1809, na mesma época em que o então tenente Richard Sharpe, liderando um destacamento de fuzileiros, foi separado com seus homens do exército britânico e, cercado pelos franceses, foi obrigado a fugir e aceitar a ajuda do oficial da cavalaria espanhola, major Blas Vivar. Com isso Sharpe e Morre jamais se encontraram, o que considero uma grande pena. Mesmo assim, o ar respirado em O Forte é o mesmo dos livros de Sharpe, a mesma fumaça, o mesmo cheiro de ovo podre da pólvora que dispara muitos mosquetes e mesmo cantarolar das antigas canções da soldadesca:
Here's adieu to all judges and juries!
Justice and Old Bailey, too;
For they bound me to King George's Army
So Adueu to Olde England Adieu…
A diversidade das pesquisas que os temas propostos em O Forte inspiram é mais do que suficiente para considerá-lo um dos melhores livros de Cornwell que li. Porém, assim como o Sharpe em Trafalgar, talvez algum editor devesse pensar em uma edição, senão ilustrada, ao menos acompanhada de um glossário para termos náuticos. Por mais que seja possível acompanhar pela intuição e pelo contexto, além, é claro, de recorrer ao imprescindível Google, foi difícil não ficar perdido quando, à fls. 415, a “giba foi içada e recuada para colocar o Warren contra o vento, e então, enquanto a bujarrona e a vela de estai do masteréu do velacho eram içadas e firmadas, os joanetes inflaram com o vento fraco [...]”
Henry Wadswotth Longfellow |
Faço, ainda, um derradeiro registro acerca da tradução. Em que pese, infelizmente, jamais tenha lido qualquer livro de Cornwell no idioma original, nessa leitura de O Forte, senti que havia algo de impróprio nos diálogos ao ver os personagens usando o pronome “você”ao se dirigirem aos outros do mesmo grau na hierarquia militar. Confesso que esse detalhe, que deve estar presente em outras traduções, jamais havia me despertado a atenção. Talvez recentes leituras de romances de Machado de Assis e, sobretudo, de Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida, tenha-me levado a imaginar que nos séculos XVIII e XIX os personagens deveriam utilizar, no mínimo, a segunda pessoa, de maneira que um oficial, se dirigindo a outro de igual estatura talvez devesse utilizar o “tu” e dirigindo-se a um superior o “vós”. Leiko Gotoda fez algo parecido em sua tradução de Musashi de Eiji Yoshikawa, conforme ela própria explica em elegante nota no início da referida obra. Pensando nos livros que estão por vir, é o nosso humílimo registro imaginando, quem sabe, estimular a reflexão da equipe da Editora Record e do tradutor Alves Calado.
Por fim e voltando a falar em O Forte, há uma questão para a qual nem mesmo o Google pôde me ajudar a encontrar uma resposta: o que diabos significa Majabigwaduce?