“Gallows Thief” é o título original de mais esse excelente romance de Bernard Cornwell. Como se sabe, a versão publicada no Brasil pela Editora Record foi chamada de “O Condenado”. O livro é brilhante: as descrições são finas e detalhadas; a trama é surpreendente e divertida; as referências culturais são muitas e variadas; e as personagens marcantes. Tudo em sua composição parece obedecer a uma ordem bem planejada e minuciosa, como sói ocorrer com os romances históricos assinados por Cornwell.
É de se notar, entretanto, que o livro não foi recebido pelo mercado brasileiro com o entusiasmo que merecia. Talvez – mera especulação – apenas sintoma da tradução do título do livro o fazendo parecer um dos romances jurídicos do advogado norte-americano John Grisham. Isso poderia afastar os fãs de romances históricos, porém o nome de Bernard Cornwell, certamente, os traria de volta, ainda que o autor não contasse com uma legião de fiéis seguidores no Brasil. Talvez o sucesso de outros livros do autor, talvez a falta de uma campanha de marketing mais agressiva por parte dos editores brasileiros de Cornwell, resta saber. O fato é que “O Condenado”, entre os títulos publicados no Brasil, é um dos últimos lembrados quando se pensa no escritor inglês, o que, definitivamente, é uma pena. Em minha modesta perspectiva, o público em geral, de uma forma ou de outra, subestima este livro e com isso perde uma grande aventura de investigação policial, ambientada na Inglaterra dickensiana do início do Século XIX.
Os ingleses – havia dois anos - derrotaram Napoleão em Waterloo e a expansão do império não encontraria mais obstáculos. Eles liderariam a chamada Revolução Industrial e remodelariam a face do mundo com aço e vapor. É nessa atmosfera que, em 1817, Bernard Cornwell nos apresenta a Rider Sandman, o protagonista. Um típico herói cornwelliano: veterano do exército inglês que serviu durante a Guerra Peninsular e que combateu em Waterloo, a batalha decisiva que marcou o fim de uma Era. Além disso, Sandman é um exímio jogador de críquete. Porém, o fato de Sandman ter liderado os casacas-vermelhas no momento decisivo da famosa batalha, no confronto final com a Guarda Imperial de Napoleão, não lhe torna a vida mais fácil. O ex-oficial encontra dificuldades nos tempos de paz, como a maioria dos veteranos das guerras napoleônicas. Não bastasse, o pai de Sandman, jogador contumaz, arruinou a fortuna e a honra da família e cometeu suicídio. Assim, o Capitão aceita um trabalho temporário: investigar as circunstâncias em torno do assassinato de uma condessa. Um jovem pintor é condenado pelo crime e deverá, dentro de pouquíssimo tempo, expiar seus pecados no cadafalso. Isso se, antes, Sandman não conseguir provar sua inocência em uma corrida desesperada contra tudo e contra todos.
Com suas descrições pormenorizadas, Cornwell faz a crítica elegante, mas incisiva, do sistema de punições inglês que vigorou, aproximadamente, de 1400 até 1850 e, mais tarde ficou conhecido como “Bloody Code”. A alcunha, que em português poderia soar parecido com “Código Sangrento”, se deveu ao grande número de crimes puníveis com a pena capital.
Por todo o contexto, parece inevitável não pensar em Richard Sharpe, quando se trava conhecimento com o capitão Rider Sandman. Ambos serviram na Espanha, ambos lutaram em Waterloo e se destacaram liderando seus homens e sendo, acima de tudo, soldados de escol. A dupla que Sandman forma com o sargento Sam Berrigan, aliás, é tão explosiva quanto aquela outra que Sharpe compõe ao lado de Patrick Augustine Harper.
Indo um pouco além da mera inferência, ouso dizer que encontrei referências a Sharpe no romance em dois momentos: Na página 109, Sandman explica como foi parar no endereço que é reputado reduto de bandidos:
“ – É uma taverna que me foi recomendada por um oficial fuzileiro em Winchester, e me estabeleci nela antes de descobrir que era um endereço talvez menos do que desejável. Mas me serve.”
Quem mais senão o próprio Sharpe, que além de oficial fuzileiro, ascendeu das fileiras poderia ter feito a indicação? Sharpe foi soldado raso e pertencia à escória da sociedade inglesa antes de ir parar no exército. A grande maioria dos oficiais ingleses da época pertencia à aristocracia e não poderia, portanto, conhecer a Wheatsheaf, hospedaria em que Sandman foi morar.
Mais adiante, na página 270, Sandman se lembra de como foi surpreendido por 20 dragões franceses nos Pirineus e foi salvo apenas “porque um oficial casaca-verde tinha aparecido por acaso com uma dúzia de homens que usaram fuzis para espantar os cavaleiros.” Ora, não conheço outro oficial fuzileiro que faria esse serviço melhor do que Sharpe.
Sandman é bastante carismático, não ficando atrás de Sharpe nesse quesito. O autor, inclusive, afirma, em uma resposta a um leitor, disponível em seu site oficial, que gosta bastante de Sandman e que tem planos no sentido de escrever outros livros sobre o herói. Isso seria muito interessante. Gostaria bastante de ver Rider Sandman entrar em ação novamente, por isso vou torcer para que Cornwell consiga colocar em práticas esse projeto.
Um dos pontos altos do romance diz respeito às referências culturais. Uma das personagens, o jovem que aguarda a execução de sua sentença pelo homicídio, é pintor e isso permitiu ao autor explorar alguns elementos do mundo da arte. Logo no início se pode ver a referência à escultura de Pauline Bonaparte, feita por Antonio Canova que, segundo Cornwell, virou a cabeça das mulheres da sociedade européia, de um modo geral, à época. A escultura se encontra hoje em um museu italiano, a Galleria Borghese, e quem, hoje, olha para a “Vênus de Canova”, percebe o quanto Cornwell é preciso em seus relatos.
O teatro é também ligeiramente abordado, o que me fez lembrar do romance de Dumas, “O Conde de Monte Cristo”, que se passa aproximadamente na mesma época e tem inúmeras referências à cultura do século XIX, ainda que a trama se desenvolva basicamente na França e na Itáiia. Naturalmente, pela extensão da obra de Dumas, as referências culturais são mais frequentes. Nem por isso, o fato de Cornwell ter conseguido tratar de tantos assuntos em pouco mais de trezentas páginas merece menos crédito.
O curioso é que Dumas e Cornwell escrevem sobre a mesma época, mas, respeitadas as devidas proporções, o fazem como uma abordagem diferente. Ambos são autores que prezam bastante as descrições, ambos são minuciosos, porém a mesma atividade que é corriqueira para Dumas, um escritor do século XIX, e, portanto, tratada “en passant”, se torna recriação histórica na perspectiva de Cornwell.
Vejamos um exemplo dessa divergência sutil: quando Dumas quer dizer que um dos criados de Monte Cristo atrelou uma parelha de bons cavalos árabes em seu coupé, ele está diante de uma atividade trivial para as pessoas que viveram no século XIX e, portanto, julga que basta dizer “Ali atrelou os cavalos”. Por outro lado, Cornwell sabe que poucas pessoas que vivem nos dias de hoje têm ideia do que era preciso fazer para atrelar uma parelha de cavalos à uma carruagem e, dessa forma, e também por não poder deixar de ser Bernard Corwell ele diz: “se passou um tempo enorme para colocarem os arreios, barrigueiras, cilhas, gamarras, tirantes, rabichos e rédeas” (p. 293).
Ademais, merece amplo destaque a pesquisa feita por Cornwell sobre as gírias faladas pelas pessoas que viviam nos redutos da bandidagem londrina do século XIX. Infelizmente, esse ponto não despertou nenhuma paixão no tradutor da versão brasileira, por certo que este se limitou a traduzir as expressões as tornando imprecisas e vazias de significado. A meu ver, o tradutor teria dado maior contribuição caso houvesse mantido as expressões no idioma original e se utilizado das notas de roda-pé para explicar o que elas poderiam significar em português.
Por todas essas características e por outras mil vezes sutis, as quais não me foi dado apreender, e ainda aquelas que, muito embora tenha notado, não foram aqui descritas, é que considero “O Condenado” uma pequena pérola de Bernard Cornwell. Essa pérola, todavia, continua a ser subestimada pelo leitor brasileiro.