Estou convencido de que alguns livros inspiram certa saudade antecipada antes mesmo que se leia a última página. À medida que o final se aproxima, por mais que se anseie descobrir o desfecho, toma corpo o lamento pela iminente despedida.
Este certamente é o caso de O Conde de Monte Cristo. Não é fácil vencer as quase mil e quatrocentas páginas dos dois volumes da edição definitiva da editora Jorge Zahar¹, que superou minhas expectativas pela qualidade e inclui belas ilustrações da época de lançamento original, em folhetim. Essa densidade fez com que o livro me acompanhasse por algumas semanas, mais de oito no total, me tornando íntimo das personagens e de suas histórias particulares.
Assim, cada vez que via diminuir o número de páginas faltantes, orientado por um cartão de visitas que utilizei à guisa de marcador, desejava que houvessem mais dois volumes adicionais aguardando no armário.
Naturalmente, trata-se de um desejo paradoxal em um mundo que considera prolixo qualquer texto que ultrapasse os 140 caracteres de uma twitada. Ademais, a rigor, o tal desejo continua sem fazer sentido quando se considera que a melhor parte do romance são os relatos da prisão de Dantès, mais especificamente do seu encontro com o Abade Faria até sua fuga. Poucas boas explicações, porém, advém de ilações tão simples assim.
É certo que a narrativa da fuga, do encontro com os corsários, do achado do tesouro e da vingança evidentemente contribuem para tornar obra ora comentada indispensável, mas nada se compara ao encontro com o velho clérigo italiano.
Com efeito, as circunstâncias que envolvem esse feliz encontro se assemelham mutatis mutandis a outro encontro com um sábio e a outro confinamento transformador, revelados em outro romance. Falo de Musashi, que pouco tem em comum com O Conde de Monte Cristo além do fato de ambos terem sido lançados originalmente em folhetim.
A comparação é ousada, admito. Musashi é um personagem histórico, herói nacional japonês que teve sua vida brilhantemente romanceada por Eiji Yoshikawa. Musashi é considerado o mais sábio e o maior de todos os samurais, criador do Hyoho Niten Ichi Ryu, o estilo em que se utiliza as duas espadas. Sob certo aspecto, porém a comparação não deixa de fazer todo sentido.
Refiro-me ao início daquilo que podemos chamar de carreira do Conde de Monte Cristo e de Musashi, quando eles ainda eram conhecidos respectivamente como Edmond Dantès e Shinmen Takezo.
As consequências advindas da prisão de Dantès em tudo se assemelham àquelas observadas no confinamento de Takezo. Em certo sentido, ambos jamais saíram efetivamente de suas prisões, porquanto, Dantès saindo das masmorras do Castelo de Elf e se tornou Monte Cristo; enquanto Takezo, liberto do Torreão do Castelo Himeji, transmudou-se em Miyamoto Musashi. Ambos se tornaram outras pessoas - melhores, muito melhores – em decorrência dos conhecimentos adquiridos intramuros. Cada um a seu modo, tiveram a sorte de cruzarem com aqueles sábios fundamentais; Dantés, teve o Abade Faria, enquanto Takezo teve o Monge Takuan; um abade e um bonzo.
Takuan não conviveu com Takezo na prisão, onde o nobre samurai teve apenas a companhia dos livros. Dantes, por seu turno não tinha livros, exceto o volume sobre a unificação da Itália escrito pelo próprio abade, mas a presença do sábio italiano lhe foi vital para não enlouquecer, por certo que não detinha a firme resignação e a disposição de espírito de Takezo, que é própria da cultura oriental.
Todos os homens de valor, certamente, tiveram um abade Faria ou um bonzo Takuan em suas vidas, sem os quais permaneceriam indefinidamente reclusos na escuridão de uma prisão sem muros chamada ignorância.
O Abade Faria, que considero a personagem mais marcante do romance de Dumas era um estudioso raro. Afinal eruditos povoam o mundo, mas pouquíssimos são aqueles que, além de versados nos pergaminhos da tradição, são dotados da capacidade de transmitir seu conhecimento. Nesse particular, o Abade Faria parece ser feito da mesma matéria que o Bonzo Takuan, conquanto seus métodos se revelassem totalmente díspares.
A aptidão pedagógica de seus sábios mestres e não a prisão foram as causas das mudanças operadas. Apenas os muros e a solidão os teria enlouquecido, mas o conhecimento adquirido abriram a via para o surgimento dos novos homens.
Nada obstante, é forçoso abandonar a comparação assim que os referidos heróis, cada um a seu tempo e modo, aspiram o primeiro ar de liberdade. Takezo é posto em liberdade pelo seu próprio carcereiro e Dantès evadindo-se: um deles parte para uma nova vida, de aperfeiçoamento constante e aprendizado, abandonando definitivamente o ser de outrora que sequer será lembrado; já o outro, parte apenas para uma nova classe social, porquanto anseia por uma vingança tamanha que não lhe será possível esquecer o destino do imediato do Pharaon que, não se tornou capitão da embarcação mercante, tampouco se casou com sua bem amada noiva, pois foi colhido no limiar da plenificação e da felicidade, pela traição e pela iniqüidade de seus inimigos vis. A memória da dor, sempre presente, não lhe permite abandonar suas velhas e torpes paixões.
Por outro lado, e voltando a falar apenas de O Conde de Monte Cristo, boa parte do romance, inclusive o segundo volume inteiro da edição acima referida, se passa após a fuga do Castelo de Elf. São os meticulosos preparativos de uma vingança acalentada durante muitos anos na escuridão que gradualmente tomam forma a cada página.
Mas não acabo de dizer que a melhor parte – a prisão – já passou a esta altura? Sim, foi exatamente o que afirmei. Mas isso não quer dizer que a estória contada a partir desse ponto não tenha seu valor. Ora, estamos falando de Alexandre Dumas: valor, portanto, é o que não falta.
Confesso que não poucas vezes cheguei a desprezar o protagonista, por considerar que a sua vingança era apenas uma manifestação de egoísmo injustificável, dado o inclemente transcurso de tempo e a nova condição social por ele alcançada, graças ao bom Abade. Um pretensioso exacerbado que queria se passar pela Providência.
No entanto, mesmo em tais ocasiões, quando a trama em si parecia não despertar maior interesse, impressionei-me enormemente e me regalei com as vastíssimas referências à literatura, à poesia, ao teatro, à música, à arte, à culinária, à moda, à ourivesaria, à história, à mitologia e aos próprios costumes do século XIX. Dumas proporciona mais do que uma simples viagem, ele nos brinda com um mergulho nesse período tão excitante da história do homem ocidental.
Antes do final, todavia, se percebe que a mensagem de Dumas era bem outra. Em realidade, dentro de tal perspectiva, o desfecho daquele relato fascinante não estava adstrito apenas à meras cirscunstâncias de causa e efeito, de crime e punição ou de dor e vingança. Antes, mensagem diversa fica bem clara no momento em que, prestes a consumar a vingança de Deus da qual se julgava portador, Monte Cristo percebe que não pode representar o papel, pois lhe falta o mais terrível dos atributos divinos: a alteridade.
A terrível alteridade de Deus.
No fim de tudo, como se o autor quisesse garantir que uma mensagem positiva perdurasse, em que pesem a pequenez e a absurda insensatez de todas as ações humanas, ele assenta uma frase muito especial, do tipo que tem o poder de acompanhar o leitor doravante, quiçá por uma vida inteira: “esperar e ter esperança.”
Comentar o livro foi quase tão bom quanto o exercício de tentar decifrá-lo. Assim é O Conde de Monte Cristo. Em uma palavra: belíssimo.
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1 No original, Le Comte De Monte-Cristo. Nas imagens, capas do Segundo e Primeiro Tomo, respectivamente, de uma edição francesa da editora Hachette Jeunesse, lançados em 2007.
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1 No original, Le Comte De Monte-Cristo. Nas imagens, capas do Segundo e Primeiro Tomo, respectivamente, de uma edição francesa da editora Hachette Jeunesse, lançados em 2007.