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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Catarse

No começo aquilo parecia uma tortura. O tipo de sacrifício que as pessoas se impõem no decorrer da vida, pois têm certeza de que, passando por isso, atingirão um objetivo qualquer.

No total, o percurso se estendia pouco além de onze mil metros. Uma distância que um corredor relativamente bom cobre em aproximadamente 30 minutos. Ocorre que ele não era nenhum corredor profissional, longe disso. Quando começou, era um corredor afetado: contava cada passo, sentia cada pisada, abria a boca demais, abaixava a cabeça e se preocupava muito apenas com a pisada, tentando prevenir um possível trauma nas articulações do joelho e do tornozelo: primeiro o calcanhar, depois a planta do pé se amoldando ao chão até chegar à ponta dos dedos e oferecer um novo impulso e assim continuamente, um pé depois do outro. A falta da melhor técnica o fazia avançar muito pouco, malgrado grande desgaste. Sofreguidão ritmada e constante.

Sempre que partia se sentia um Fidípides e sabia que cairia morto ao final daquele sofrimento. Mas essa morte gloriosa não veio. Com o tempo o esforço foi se tornando natural. Pouco a pouco se familiarizava, se soltava e seu corpo respondia demonstrando adaptação. Como resultado passou a correr sem estar obcecado com a chegada, de sorte que já não era necessário dizer a si mesmo o tempo todo que não podia obedecer ao desejo de parar e se deitar no chão. Então, simplesmente corria, ocasionalmente e quase involuntariamente, controlava a intensidade dos movimentos para manter a média nas constantes saliências e reentrâncias do caminho.

Os primeiros mil metros eram planos até que se atingia um suave aclive, que, por sua vez, terminava em uma brusca descida de uns bons trezentos metros. Tal descida estava ali como a oferecer impulso para a primeira ladeira a ser vencida. O ar entrava rápido a cada inspiração, invadia os pulmões e era expelido com igual presteza; a frequência cardíaca aumentava e o suor começava a verter da pele. O corpo humano é uma máquina impressionante no momento em que, exigido, exala saúde e vigor.

Pouco antes de atingir o topo da elevação daquele que era o primeiro obstáculo mais sério, sentiu uma gota d’água que, desabando pesadamente dos céus, tocou seu braço. “Ora essa” – foi o que imaginou, pois minutos atrás, enquanto executava os alongamentos preparatórios, sentira os raios solares daquele fim de tarde queimarem seu rosto. Já no topo pôde ver pela primeira vez uma massa negra que se movia lentamente no céu e se contorcia parecendo crescer. Podia, ademais, observar as copas das arvores mais próximas sacudindo-se freneticamente. Seja por ignorar completamente qualquer coisa que pudesse acontecer a partir daquele ponto – com sói ocorrer ao homem citadino que só pode se valer de sentidos destituídos de agudeza pela aglomeração social – seja por ter esperanças de que o vento logo carregasse aquelas pesadas nuvens para a direção oposta do lugar onde se dirigia, simplesmente ignorou essa advertência sutil dos elementos.

Talvez nem tenha considerado nada, pois havia se habituado apenas ao livre pensamento durante suas longas corridas. Aquele interregno de uma hora era praticamente o único tempo em que estava completamente sozinho e, assim, desembaraçado para exercitar a sua consciência. Contudo, ainda que o homem já surja no mundo dotado dessa aptidão invulgar, porquanto nada mais é senão o exato momento em que a evolução tomou consciência de si, ele nem sempre está livre da má consciência. Há pensamentos que devem ser evitados quando não se é suficiente maduro ou esclarecido para suportar o peso de algumas palavras que soam como verdades. Era assim que durante o exercício físico havia a propensão de que o desgaste mental fosse superior a qualquer outro, a depender do momento específico que era vivido e de como esse momento dialogava com as probabilidades.

Na hesitação ou na dúvida penetrante, as pessoas geralmente não estacam no lugar onde se encontram para olhar à sua volta e decidir o melhor caminho a seguir. Elas simplesmente continuam a reproduzir o movimento inicial e se deixam muitas vezes levar pelo fluxo social. É justo nesse instante que perdem o controle e a direção dos acontecimentos. O que era um barco seguindo rumo ao seu porto se torna simples pedaço de madeira à deriva, guiado apenas pelo acaso, e que vai dar na areia de alguma praia esquecida. Isso se antes não for tragado ou despedaçado por uma força maior e reveladora.

Nos dias anteriores tivera mostras de que aquilo tudo era inútil. Tivera muitos motivos para considerar seu objetivo inatingível para alguém como ele. Inquiria-se de que lhe adiantava continuar a representar aquele papel; a viver aquela vida de mero fantoche que reproduz os espasmódicos movimentos sociais. Quem eles pensavam estar enganando, afinal. Quem ele pensava estar enganando? Aquilo tinha que ter fim. Era preciso dar um basta. Dessa maneira, claro está, a seus problemas permaneceriam sem solução, mas ao menos não seria ele o único a sofrer as consequências. Algo deveria ser feito e não era aquele exercício idiota. Sentiu o ódio brotar e inflamar todo o seu ser ao pensar que os causadores do seu sofrimento àquela hora estavam rindo-se dele, do quanto era pequeno, tacanho e perdido. Concentrava tamanha energia nesse pensamento que sequer sentiu que o ritmo de suas passadas aumentava. Muito menos sentiu que as grandes nuvens negras estavam cada vez mais próximas e ameaçadoras.

Os momentos que antecedem um temporal são frios, melancólicos e vazios. O mundo parece se preparar par o fim. Toda alegria se dissolve enquanto o céu escurece e os ventos agitam os escombros do mundo, empurrando qualquer criatura viva e oprimida para o abrigo mais próximo que puder encontrar. As esperanças se dissolvem ao sabor dos redemoinhos e os sonhos vão se perder no pélago insondável da ignorância. Nesse clima, na antevéspera do cataclismo, os carros continuavam passando rápido, como se eles também estivessem ávidos por encontrar proteção. Não obstante, seus sentidos embotados pela perturbação moral não lhe permitiam contemplar esse espetáculo desditoso da natureza.

Toda auto-análise sincera incute medo, desolação e deprime muito antes de produzir o tipo de substância a partir da qual o caráter firme consegue, não sem grande resolução e força de vontade, moldar o próprio destino. A força gerada internamente pelo entrechocar de tantos sentimentos contraditórios, no mais das vezes, se vê utilizada apenas na busca de um fim rápido e definitivo para toda a angustia do ser que sabe que é, e do viver tentando continuar sendo.

É certo que não se pensa na tormenta que está a se formar no céu quando já se sente as primeiras e terríveis trovoadas de uma tempestade interna. “Que vá tudo para o inferno” - pensou enquanto corria mais rápido para que, quem sabe assim, o coração arrebentasse no peito e sua alma se perdesse no vazio silencioso das inteligências angélicas, onde não há sofrimento nem dor.

Uma segunda gota ainda mais pesada que a primeira tocou-lhe a testa e o nariz e talvez apenas por isso tenha percebido que chegara à curva na qual se podia avistar o marco que delimitava a exata metade do caminho, de maneira que, dentro em pouco, deveria fazer meia-volta e retornar. Não fosse a indiferença que sentia em relação a tudo que dissesse respeito à existência, naquele instante teria notado também que estava mais escuro que o habitual para aquela hora do dia; que as janelas e portas das casas ao redor estavam todas cerradas; e que as pessoas, afora as que passavam velozes em seus carros, já não eram vistas; em suma, que fora tornado um pária e que se dirigia para um altar de imolação.

Contudo, já não havia motivos para regressar. Tudo era inútil, como essa corrida e percorrer o caminho de volta significava marchar para aquela existência resignada que lhe repugnava ao extremo. Qualquer coisa era preferível a voltar às convenções daquela sociedade hipócrita. Mas então, longe dali, a ira de Zeus se completou e o céu se precipitou sobre o mundo.

Foi colhido em plena corrida por uma massa compacta de água que tocou o solo ao ser redor ao mesmo tempo produzindo um som abafado e contínuo. A visão se turvou de imediato e a cortina de água poderia tê-lo feito se desorientar, acaso não conhecesse cada palmo daquela estrada. Nesse momento, já oprimido ao extremo pelos pensamentos que rondavam a cabeça desde os primeiros passos que dera naquela tarde, seu coração se lembrou vagamente de um lugar seco e confortável que se acostumara a chamar de lar; se lembrou de muitas pessoas que talvez o esperassem; recordou de muitos diletos amigos que não estavam ali para ampará-lo. Porém, rapidamente se livrou daquele sentimento de ternura que em nada lhe aproveitaria naquele momento.

A chuva torrencial transfigurou a paisagem circundante e suas roupas lhe pesaram no corpo. A água abundante, se não foi suficiente para levar todos os pensamentos funestos que vinha nutrindo, pelo menos despertou o instinto de sobrevivência, sem o qual a humanidade não teria chegado aos dias atuais.

O vento forte brincava com as gotas de água e elas pareciam lhe atingir vindas de todas as direções, como milhares de minúsculos e certeiros dardos que vibravam sobre o seu corpo se misturando ao seu suor. Não havia o que fazer senão correr, mesmo que o abrigo mais próximo estivesse há mais de cinco mil metros de distância, o que, naquelas condições, significava que não poderia ser atingido em menos de trinta minutos. Aquela maldita chuva seguramente não iria cessar até ter inundado todos os continentes, mas agora ela havia transformado sua ira em desejo de viver e assim lutaria até o fim em nome da autopreservação.

De repente tudo aquilo que teria abandonado de bom grado instantes atrás se tornou o motivo para escapar àquela dificuldade sem precedentes. O desespero, a desrazão, o recrudescimento moral e a opressão deram lugar à força de vontade e à esperança. Um combustível que queimava de dentro para fora e o teria feito percorrer dez vezes a distância entre Marathon e Atenas.

Lá no fundo, porém, o certo é que uma estranha transformação havia se operado em seu espírito, por força das conclusões que havia chegado antes da chuva cair. A consciência que nunca se cala dizia que a nova esperança surgida do instinto de sobrevivência seria tão perfunctória quanto vã, uma vez que a bonança que, segundo a tradição, dá lugar a todas as tormentas não seria capaz de contradizer o próprio universo e aquela existência sua miserável.

Por seu turno, a forte chuva não cessava e desabava com a mesma intensidade do primeiro minuto. Um relâmpago cortou o céu em grande extensão e, por um segundo, o mundo a sua volta coberto por uma penumbra fria se cobriu de prata; instantes depois um som rouco e crescente se fez ouvir sobre a face castigada da terra com tal intensidade que foi-lhe difícil acreditar que o céu não houvera se partido.

Num ímpeto, chegou a um determinado ponto da estrada que no caminho de ida representava o maior desafio do percurso: inclinação entre trinta e quarenta graus, o que era uma verdadeira escarpa para os planaltos daquelas paragens. No caminho de volta, grande ironia da perspectiva, o trecho era quase uma recompensa. No máximo, era preciso fazer um tipo diferente de esforço, refreando o corpo para que esse não se abandonasse ao forte estímulo que a gravidade lhe imprimia. Naquele momento, pouco se via adiante. Os animais que sempre parecem preparados para esses eventos da natureza estavam abrigados e nem os automóveis atreviam-se a trafegar sob aquela borrasca.

Foi então que lá adiante divisou um vulto subindo a mesma ladeira que, por sua vez, descia. Alguém mais se determinava a enfrentar a força colossal dos elementos e singrava o espesso véu de água que caia dos céus. Em breve cruzaria com a sombra que se vinha subindo a se contorcer, como se estivesse desprendendo grande esforço atingir a elevação, sob o açoite inclemente de Zeus. Notou pelas proporções e pelo modo como se movia que não era uma criatura conhecida. Preparou-se então para uma batalha. Se a ira de Zeus, além de liberar aqueles terríveis raios, houvesse ordenado a abertura das portas do Hades para que Cérbero viesse lhe destruir, o encontraria a postos. Ele decidiu que não cairia, não sem luta.

Nesse momento a chuva intensificou sua força e caiu como nunca. A sua retina, porém, já se adaptara melhor às condições extremas e à medida que o outro se aproximava foi possível discernir: tratava-se de alguém que vinha com enorme esforço conferindo movimento aos pedais de uma bicicleta. Um homenzinho valente que guiava de pé sobre os pedais para adicionar a força da gravidade àquela gerada por suas pernas. O veículo, uma bicicleta azul, de quadro e pneus grossos, desprovida de jogo de marchas ou outro equipamento capaz de facilitar o trabalho do seu condutor, era equipada apenas por um volume que trazia acoplado à traseira: um grande e bojudo cilindro de gás de cozinha, cheio ou vazio que fosse.

Sua trajetória estava prestes a se cruzar com a daquele surpreendente ciclista que, talvez pela dúvida inicial que lhe havia incutido, não lograra êxito em lhe despertar qualquer simpatia.

Então algo realmente surpreendente aconteceu: o ciclista, que mantinha a cabeça abaixada devido ao esforço que fazia para não deixar que o movimento de sua bicicleta cessasse, inadvertidamente, se sentou no celim e, sem deixar de pedalar, apresentando-lhe um sorriso largo e radiante, retirou a mão esquerda do guidon estendendo-a num gesto simples e amistoso.

O grande sorriso daquele rosto desconhecido e tão molhado quanto o seu calou fundo, porém a mão estendida em uma atitude universal de saudação foi ainda mais eloqüente e decisiva. Todas as armas que trazia e que fora colecionando no decorrer daquela insólita aventura caíram por terra. Não chegou a pensar no que fazia enquanto estendia sua mão para que na passagem ambas, a sua e a do ciclista, se encontrassem produzindo um estalo que ecoou acima do barulho da chuva.

Ele fecha os olhos e ainda ouve aquele som. Nele reconheceu mais que um amigo: um camarada que estende a mão quando ele próprio precisava ainda mais de ajuda, pois possui o tipo de consciência e da solidariedade que é próprio apenas daqueles que trilham o mesmo caminho.

No dia seguinte dormiria até bem mais tarde que o habitual. Não conseguiu explicar porque afinal se sentira disposto, livre e motivado. Ouviu dizer que a tempestade passou tão rápido quanto começou e que o brilho dos derradeiros estertores de Hélio se derramaram pela estrada produzindo um logo tapete afogueado e que, por um minuto, tremeluziram nas gotas de chuva acumuladas que ainda caiam das árvores. Depois de muito tempo voltou a sentir as dores musculares que eram tão comuns logo que começou a treinar. Se essa fosse uma preocupação, ainda que mínima, teria percebido que jamais havia corrido aquela mesma distância em tão pouco tempo.

Chegando mais uma vez a hora marcada - desistindo de se interrogar acerca dos motivos de sua recente alegria e paz de espírito – ele simplesmente partiu. Onze mil e quatrocentos metros o aguardavam.