Capas das edições latinas: Brasil, Portugal e Espanha |
A Justa Medida
O velho adágio dispensa explicações: “A cavalo dado não se olha os dentes”. Respeito bastante esta sentença popular, até porque é um dos ditados que me lembro de ouvir desde que era criança. Contudo, quando se ganha um livro não é bem assim. Antes, assim que o embrulho é aberto, quem recebeu o presente observa a capa, confere o título, sorri, faz passar as folhas rapidamente, como a conferir se estão todas ali e, quase sempre, diz algo do gênero de “ora, é maravilhoso, mas realmente não precisava se incomodar”. Sem mais delongas, considero um livro o melhor presente, sempre. Seja quando se oferece, seja quando se recebe, não há nada como um livro, um presente em si mesmo.
Quando ganhei “O Filósofo e o Imperador” da lavra escritora canadense Annabel Lyon eu não o conhecia. De pronto, a belíssima capa da edição brasileira da editora Leya me despertou a atenção: fundo negro destacando a silhueta de um grande corcel, também negro, recebendo no focinho o afago de um braço direito alongado. A lombada rosa shock cria um contraste explosivo, resultando em um conjunto, por assim dizer, contemporâneo. Uma rápida passada de olhos pelo subtítulo: “Um romance sobre Aristóteles e Alexandre”. “Que grande dupla” eu pensei. Normalmente o tema teria bastado para despertar o meu interesse: “Muito bem, este vai para a fila.” Estava decidido.
Antes de avançar é preciso dizer que minha relação com meus livros começa bem antes da leitura propriamente dita. Por mais que eu seja adepto da prática de ler vários ao mesmo tempo, não é possível ler todos. Assim, como uma espécie de bibliotecário amador dos meus próprios volumes, eu os seleciono em uma ordem de leitura semi-rígida, que segue um instinto natural. Alguns para serem lidos outros relidos. Naturalmente, a ordem não pode controlar interesses despertados inopinadamente e quase sempre há um ou outro título a furar a fila.
O romance de Annabel Lyon saltou a frente de vários outros quando, vendo o belo cavalo na capa – que só poderia ser o próprio Bucéfalo –, decidi olhar-lhe os dentes. Abrindo a primeira página e lendo a primeira frase, deparei-me com uma descrição impactante. Para ilustrar o que digo, permitam-me passar a palavra à própria Annabel Lyon:
A chuva cai em cordas negras, vergastando meus animais, meus homens e minha esposa, Pítias, que na noite passada ficou deitada de pernas abertas enquanto eu tomava notas sobre a boca de seu sexo e que, agora, nesse décimo dia de nossa viagem, chora lágrimas silenciosas de exaustão.
Na versão publicada nos Estados Unidos em 2010 pela editora Knopf, o mesmo trecho:
The rain falls in black cords, lashing my animals, my men, and may wife, Pythias, Who last night lay with her legs spread while I took notes on the mouth of her sex, who weeps silent tears of exaustion now, on this tenth Day of our jorney.
A bela edição de Taiwan |
O romance se passa no período em que Aristóteles foi preceptor do jovem Alexandre. Porém, uma das vantagens de termos o filho de Nicômaco narrando a estória é justamente saber um pouco mais dele pelas digressões e especulações trazidas pela autora. E, de fato, o ilustre narrador descreve cenas de sua juventude, de suas relações familiares e, em quase tudo, é possível identificar um brilho das idéias que hoje lhe são atribuídas, cuidadosamente pinçadas pela autora e adicionadas no romance. Sabe-se que Aristóteles escreveu imenso, mas também que muita coisa, infelizmente, não chegou aos dias de hoje (vide “O Nome da Rosa”).
Mais tarde fui saber que a cena da primeira frase do livro, transcrita acima, foi inspirada por um escrito sobre biologia do filósofo em que ele descreve tal parte do corpo feminino. Em uma entrevista para um site em Portugal a escritora comenta: “[...] ele tem de ter olhado para alguém para saber o que escreveu. E cruzei isso com o facto de ter tido uma mulher e fiz uma extrapolação.”
O que vemos é um Aristóteles muito humano, ligado ao mundo sensível e, portanto, mais próximo do homem que de fato viveu no terceiro século antes de Cristo. Há muito sangue e muito sensualismo na narrativa. As dissecações dos animais, os estudos, as catalogações, e todas as preocupações variadas que povoavam a cabeça do grande homem. Annabel Lyon explica, na mesma entrevista aludida acima: “Eu queria trazê-lo de volta à forma humana, não o apresentar como uma estátua de mármore, mas sim como alguém que pudesse estar numa sala connosco.”
O Aristóteles de Annabel é tão humano que por vezes, tive a impressão de que a autora sugere que ele sofria de algum transtorno comportamental, algo como uma bipolaridade que o fazia oscilar entre episódios de letargia e inércia e outros de grande produtividade e vigor, quando então escrevia inúmeros tratados sobre múltiplos assuntos diferentes. A medicina antiga e a forma com que os gregos julgavam entendê-la é apenas um dos assuntos interessantes que ocorrem amiúde no livro.
A autora e sua obra |
De um modo geral, os atores que atuam nesse grande palco pensado por Annabel Lyon são absolutamente fantásticos, muitos, é bem verdade, chegam precedidos por suas ilustres biografias como Nicômaco, Felipe, Platão, Demóstenes, Calístenes, Heféstion, Ptolomeu, Espêusipo (que sucedeu o tio Platão na direção da Academia, frustrando Aristóteles) e o próprio Alexandre.
A propósito, como é comum no mercado editorial brasileiro, a tradução do título original “The Golden mean” subverte seu o sentido original. Em verdade, o novo título induz o leitor ao erro e faz parecer que o filósofo e o garoto que viria a ser um grande conquistador, dividem o status de protagonista do romance, mas isto não é verdade: Alexandre é meramente um coadjuvante, por incrível que isso possa parecer.
Evidentemente, desde a sua primeira aparição, o garoto que expandiria os limites da glória e levaria o modo de vida grego para os confins do mundo, demonstra possuir grande personalidade. Já era possível antever uma dignidade especialíssima e uma energia indomável naquele garoto que um dia se tornaria o Faraó do Egito e subiria ao grande trono aquemênida, que fora ocupado pelos grandes reis da Pérsia.
Outras duas versões canadenses e uma da Inglaterra |
Já avançando além do período tratado na obra, é sabido que Aristóteles sobreviveu ao seu ilustre pupilo e voltou à Antenas para fundar sua própria escola, o Liceu. Conforme dito, o romance de Annabel Lyon não chega tão longe assim. Despedimo-nos de ambos, do Filósofo e do Imperador, ainda nas paragens da Macedônia e parar por aqui é parar no limite do que é recomendável dizer para manter este comentário livre dos terríveis e temidos spoilers. Contudo, os acontecimentos posteriores, que pertencem apenas à História, de alguma forma me fizeram imaginar (porque não?) e mesmo ter esperança de que, quem sabe um dia, a autora não decida continuar contando esta estória.
E enquanto me distraía com tal perspectiva, de que a autora encontrasse, por fim, uma justa medida para isso, um meio termo, descobri, por meio de uma entrevista que Annabel Lyon concedeu a uma revista espanhola, que ela já trabalha em uma sequência para seu livro e que desta vez a narradora será a pequena Pítias, filha do Estagirita, que ficou órfã aos 16 anos e, antes disso, viveu os momentos conturbados trazidos pela morte de Alexandre na Babilônia. Confesso que mal posso esperar por mais essa ousadia de Annabel Lyon.