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terça-feira, 21 de junho de 2011

A Morte de Napoleão


A edição Brasileira

Mil vezes sutil

O ano do senhor de 2011 já avança a passos de carga rumo ao seu ocaso, mas a delicada e elegante edição de 1993, da Companhia das Letras, de A Morte de Napoleão ainda está disponível para venda nas principais livrarias. Não se trata de livro de bolso, a edição é refinada, em que pese o formato reduzido. Em verdade, chega a ter menores proporções que os pocket’s disponíveis atualmente no mercado editorial: os 11 x 15 cm deste romance de Simon Leys, por exemplo, parecem ainda menores se comparados com os 12 X 18 cm das edições da Best Bolso. O mesmo se observa em relação aos já clássicos 11,5 x 18 cm dos livros de bolso da Martin Claret e da Companhia de Bolso.

Por outro lado, ao perceber o valor mercadológico médio do livro, o leitor familiarizado com os preços atualmente praticados sente que está diante de uma obra fora de série, por certo que, atualmente, pelo preço que se paga por um exemplar da obra ora comentada, é possível adquirir 2 ou 3, a depender do título, dentre os livros de bolso de qualquer uma das editoras acima citadas.

Se, como outro dia mesmo ouvi dizer, ainda há quem compre livros pela capa ou apenas para compor a decoração do escritório, imagino que A Morte de Napoleão tenha largado em desvantagem, pois, como sói ocorrer em relação a todas as manifestações da delicadeza, é preciso ser dotado sutileza e espírito para apreciar a sua composição de aparente debilidade.


Versões australiana, inglesa e francesa do romance
Não conhecia o autor, mas segundo sua editora brasileira [1] Simon Leys “é o pseudônimo do belga Pierre Ryckmans, sinólogo e historiador de arte, autor de diversos ensaios, dentre os quais os mais conhecidos são Ombres chinoises, Les habits neufs du président Mao e Orwell ou l'horreur de la politique. Atualmente é professor da Universidade de Sidney, Austrália.”

Feitas estas considerações e para que não haja dúvida sobre o juízo que ouso fazer da obra, é preciso, de pronto, recorrer a um bom clichê: nos pequenos frascos é que encontramos as melhores fragrâncias. Sim, pois, o livro é excelente e penso que jamais se deve subestimar a capacidade pedagógica e exemplificativa de um bom clichê.

A narrativa deste delicado romance é primorosa. Revela um estilo conciso e vibrante, diante do qual surge a certeza de que nenhuma palavra está ali ao acaso, que cada frase foi especialmente cultivada e que cada mínimo fragmento ocupa seu lugar indispensável no todo.

Algo que remete ao estilo literário desenvolvido pelo próprio Napoleão (o Napoleão histórico, não o retratado no romance) consoante sustenta M. Émile Henriot [2], autorizado crítico literário do periódico Le Monde, de Páris, que atribui ao imperador dos franceses:

“um style exceptionnel... le don du style et le talent de s’exprimer avec une force, une justesse, une couleur et dans une tour, avec un accent et un rythme méme que ne sont que ‘à lui. Ce sont lá qualités d’ecrivain-né.”

“Um estilo excepcional… O dom do estilo, o talento de se expressar com vigor, com precisão, com elegância e colorido, na tonalidade e no ritmo inconfundíveis que lhe são peculiares. Tais atributos são próprios de um escritor nato.”
Com efeito, por ignorar o restante da obra de Leys, estive livre para permitir-me elevar o pensamento à conjectura de que talvez (por que não?) ele tenha se apropriado propositalmente do estilo de Napoleão [3], para compor este romance de fácil leitura e que ao mesmo tempo, dado o alcance do tema, remete à questionamentos profundos, sem deixar de cumprir um dos papéis essenciais do romance que é o entretenimento.
Edições francesas e a edição inglesa inspirada no filme
Seria, de fato, o ornamento final e sem par para essa obra, uma sutileza do gênio. Contudo, como dito, a associação entre os estilos de Leys e Napoleão pertence tão somente ao campo da especulação que, por mais temerário e infundado que seja, é inerente ao livre papel interpretativo exercido por qualquer leitor. Vale lembrar que a legitimidade desse, por assim dizer, exercício exegético do leitor é irrefutável. Umberto Eco [4] disse que, para não perturbar o caminho do seu texto, todo autor deveria morrer depois de escrevê-lo. Eco, não obstante, acredita que nada consola mais o romancista do que descobrir leituras nas quais ele jamais pensou e que lhe são sugeridas depois pelos leitores.

O título do livro de Leys, A Morte de Napoleão, faz o leitor um pouco mais atento pensar imediatamente no exílio do Imperador na ilha de Santa Helena, o pedaço de rocha em meio ao vasto oceano Atlântico onde Napoleão viveu seus últimos dias e narrou suas memórias. A extensão da tragédia sentida por Napoleão pode ser percebida na seguinte declaração [5]:

"Novo Prometeu [6], estou preso a uma rocha e um abutre [7] me devora. Sim, eu tinha roubado o fogo dos céus para levá-lo à França: o fogo voltou para sua fonte, e aqui estou! O amor da glória se assemelha à ponte que Satã colocou sobre o caos para passar do inferno ao paraíso: a glória une o passado ao futuro, que estão separados por um imenso abismo. Nada resta a meu filho além de meu nome."

Pois bem, da mesma forma, o título remete à teoria desenvolvida pelo dentista sueco Sten Forshufvud, que por meio de análise em amostras de cabelo de diversas fases da vida de Napoleão, antes e durante o exílio, inaugurou a cada vez mais difundida e aceita corrente segundo a qual Napoleão foi assassinado em Santa Helena, vítima de um envenenamento gradual por arsênico. Assassinado por mãos inglesas. O lugar-tenente, o carcereiro e o verdugo eram um só homem e não outro senão o vil Hudson Lowe.

Todavia já na primeira página, vemos que não é nada disso. Ao que sinto, é apenas a primeira de uma série de agudas sutilezas da obra, o fato de o autor fazer notar, ainda na primeira página (para quem obvia e eventualmente não teve a curiosidade de se informar sobre o enredo do romance) que, na verdade, Napoleão escapou e seu lugar foi tomado por um sósia. Escapando de Santa Helena, Napoleão escapará também à própria morte? Essa é uma das perguntas que procurei, com vivo interesse, nas páginas seguintes do livro.

Napoleão e Autruche
Por seu turno, a tese da fuga é completamente verossímil, uma vez que o embuste, não por acaso, arrisco dizer, coincide com a fase em que, segundo os biógrafos de Napoleão, sua doença campeava (ou seria já o efeito da ingestão de arsênico?), de maneira que o Moderno Prometeu se esquivava da presença dos guardas ingleses e de seu carcereiro Hudson Lowe, passando a maior parte do tempo recolhido à casa que foi sua última morada. Portanto, basta aceitarmos que o sargento que, na ficção, tomou o lugar do Imperador, propositalmente, evitava o contato com o inimigo, visando preservar-se de um possível reconhecimento que fatalmente denunciaria o plano.

Tudo encaixado, Napoleão navega sob o disfarce de um simples camareiro, que logo recebe da tripulação do brigue em que se encontra o apelido de Napoleão. Melhor disfarce que este certamente não haveria. Os vulgares tripulantes do Hermann-Augustus Storffer, por sua vez, o tratam o camareiro por Napoleão em tom de troça, pois, por mais que ele lembre o inigualável Senhor da Europa, a sua figura decrépita e abatida, consequência dos anos de exílio e da idade que avança, definitivamente não é a mesma do Vencedor de Marengo e Lodi, do Napoleão cruzando os Alpes visto no famosíssimo retrato a óleo de Jacques-Louis David, tampouco remete ao bravo general de Arcole magnificamente representado por Antoine-Jean Gros.

Nesse ponto, e ainda estamos muito no início da narrativa, a lembrança do glorioso regresso de Napoleão de Elba, local de seu primeiro exílio, é inescusável. Porém nesta fábula de Simon Leys, os dias gloriosos ficaram para trás. Aqui vemos um Napoleão de carne e osso a quem a vida apresenta grandes dilemas, bem como ergue altos obstáculos e diz não, como faz com qualquer outro mortal.

O Imperador marcha à frente de uma nova tropa
Foi interessante notar que o autor, que é Belga, encontrou uma forma inesperada de fazer Napoleão retornar à Waterloo, Foi assim, inclusive que perdeu o contato com os dispersos e ocultos conspiradores que patrocinavam o seu regresso.

Sem dúvidas, o ponto alto do enredo é o anúncio da morte do falso Napoleão em Santa Helena: quando Napoleão percebe que está tudo acabado, porquanto jamais poderá lutar contra o próprio Napoleão Bonaparte. Os mortais e os heróis legendários, pois, vivem em planos diferentes da existência. Nada pode o homem contra o mito.

Assim, ao separar o Napoleão histórico do legendário vencedor de Austerlitz, ao afastar o homem do mito, Simon Leys, em última análise, faz o elogio dos admiradores e bonapartistas de todos os tempos – entre os quais, naturalmente, me incluo – bem como o elogio da inventividade humana, capaz de criar uma áurea quase sagrada em torno de um gigante, que acaba o distinguindo de tal forma que o torna muito maior do que ele jamais seria se tivesse que contar apenas com os favores de sua limitada condição humana. Na ficção de Leys o Napoleão Senhor da Europa, acostumado a ditar o futuro e controlar o destino de milhões ao lado de suas belas amantes e princesas paramentadas em púrpura, passa a viver no subúrbio parisiense, onde se torna amante de uma viúva, a triste Autruche, com quem tenta ganhar a vida a vender melões.

Contudo, o autor não chega a depreciar o titânico corso. Antes, sua abordagem se apresenta como uma interessante antítese entre as posições dos detratores e dos adoradores de Napoleão, que há mais de duzentos anos travam incessante duelo dialético.


O Napoleão de Ian Holm
O romance de Simon Leys recebeu uma divertida adaptação cinematográfica em 2001, intitulada The Emperor's New Clothes, na qual o ator inglês Ian Holm interpreta Napoleão.

Uma pequena jóia mil vezes sutil e repleta de deliciosas surpresas que, pela qualidade invulgar, está a merecer uma campanha de marketing mais agressiva do que teve até então, por parte de seus editores no Brasil.

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[1] ^ Informações constantes da página do autor no sítio da Companhia das Letras, disponível em: http://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00286, acesso em 16/10/2010, às 22h51m.

[2] ^ apud MENDONÇA, Euclides. A Força do Estilo de Napoleão. 2. ed. Brasília: Tesaurus, 2008, p. 21.

[3] ^ No brilhante estudo acadêmico que acabou se tornando o livro A Força do Estilo de Napoleão, o professor Euclides Mendonça, trazendo à colação excertos de obras raras e conceituadas, afirma que a produção literária de Napoleão, em sua juventude, é tão abundante e variegada que “muitos estudiosos indagam o que não seria ele, como escritor, se não se tivesse tornado, sobretudo, Napoleão (op. cit., 2008, p. 57.). Sobre a produção na fase gloriosa da vida de Napoleão Euclides Mendonça anota que “razão, cálculo, decisão política ou militar, cólera ou amor, tudo vem à luz impelido por um estilo explosivo, claro, sobretudo parco em palavras.” (p. 65).

[4] ^ Eco, Humberto. Pós-Escrito a O Nome da Rosa. Tradução de Letizia Zini Antunes e Álvaro Lorencini. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 10-12.

[5] ^ Napoleão Bonaparte BONAPARTE, Napoleão. in: BERTAUT, Jules (Org.): Napoleão Bonaparte: Manual do líder. Tradução de Júlia da Rosa Simões. Porto Alegre: LP&M, 2010, p. 70. Título original: Manuel du chef: Aphorismes chosis et préfacés par Jules Bertaut.

[6] ^ Prometeu, na mitologia grega, o titã que roubou o fogo divino de Zeus e o levou à raça humana, que a partir de então se diferenciou dos outros animais. Como castigo pela ousadia de Prometeu Zeus o acorrentou no monte Cáucaso, onde todos os dias um abutre devora seu fígado, que se regenera todas as noites para ser devorado mais uma vez no dia seguinte e assim eternamente, em um ciclo de agonia infinita. (Nota Nossa).

[7] ^ O papel de abutre cabe bem à Hudson Lowe, o carcereiro de Napoleão em Santa Helena. Oficial modesto do exército inglês que se esforçou por tornar piores possíveis os últimos dias de Napoleão no exílio. Algumas fontes dão conta que Napoleão se divertia ao irritar Lowe e o fazia frequentemente. Lowe é um dos grandes suspeitos de perpetrar o suposto envenenamento de Napoleão por arsênico, que teria levado a sua morte prematura em 1821. (Nota Nossa).