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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

De vestes talares e judicioso talante




"Às vezes aspiro fundo e encho os pulmões de um ar insuportável, para ter alguns segundos de conforto, expelindo a dor. Mas bem antes da doença e da velhice, talvez minha vida já fosse um pouco assim, uma dorzinha chata a me espetar o tempo todo, e de repente uma lambada atroz. Quando perdi minha mulher, foi atroz. E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida."
Chico Buarque


A vida impõe tantas difíceis escolhas, são tantas as bifurcações que surgem ao caminho que às vezes parece impossível discernir para qualquer um que não possa contar com os favores de uma pitonisa.

Camisa azul ou verde? Gravata escura, terno claro? Antes do divórcio Justino sequer imaginava que cotidiano possuísse tantas amenidades, tantas especificidades e tão tortuosas escolhas. Afinal, a Dagmar sempre esteve lá para se ocupar dessas coisas pequenas. Houve um tempo que juraram um ao outro que ficariam sempre juntos, mas, depois, Justino optou pelo trabalho ao qual se dedicou com todo afinco, desprezando o melhor que podia a família, perdendo os melhores anos e deixando a pobre da Dagmar sozinha a educar os filhos e administrar a casa. Claro que ela se saiu bem, sobretudo com as crianças, mas agora que os pequenos cresceram e a Dagmar havia decido ir embora só havia restado o trabalho a Justino. Santa ironia, pois justo agora, quando ele tinha todo o tempo do mundo para o trabalho, o labor diário passou a lhe soar penoso.


Enquanto refletia se atendia o chamado da fome e comia uns biscoitos em casa ou deixava para tomar um café no caminho, pensou em como a Dagmar se fazia presente, posto que fisicamente ausente. Será que ele deveria procurar um psicólogo? Ou seria tudo inútil? Pensando bem, começava a sentir que nunca teve controle de sua vida. Do seu lado do tabuleiro sempre acreditou que movia as peças, mas, a rigor, suas jogadas eram infantis, as jogadas de um player inexperiente, imaturo, incapaz de antever dois lances a frente. Do outro lado, o oponente de alvas cãs e de vetusto brilho no olhar era um mestre desse jogo, compenetrado, estudioso, conhecedor de todas as peças e todos os movimentos, seu nome era Destino, cognominado, o Inexorável.

Aflição, ansiedade, desmotivação. O sentimento era de total abandono de si mesmo. Uma vida que sempre esteve nos trilhos e agora descarrilava enchendo o ar de fagulhas e de destroços: xeque! Até quando o rei exposto no meio do tabuleiro conseguiria se defender? Será que Justino deveria ter rocado logo no início do jogo? Talvez ainda houvesse uma solução, se ao menos ele soubesse jogar esse maldito jogo, se ao menos não tivesse pedido a sua dama...

Já estava na garagem, dentro do carro, e ponderou se não era melhor voltar e ligar para a Dagmar. Haviam se passado 4 meses desde a última conversa e quem sabe dessa vez ela não concederia e tornaria ao lar. Tudo é possível. Mas, afinal, quem precisa da Dagmar? Antes de recorrer à essa negação ele já havia atravessado a rua e acenava a um motorista de taxi. Não se sentia seguro para dirigir naquela manhã. Havia dois dias que seu motorista não comparecia ao trabalho, mas isso era irrelevante, uma vez que não vislumbrava solução ao seu alcance. Tudo que ele pensava era que talvez fosse melhor conversar com os filhos antes de falar com a Dagmar, propor uma reunião de toda a família. 

Enquanto seu corpo era transportado no interior do veículo, sua mente corria o mundo em direção oposta para ir encontrar a Dagmar. Na semana que passou eles teriam completado novas bodas. Ou será que completaram? Fazia bem achar que sim, pois a ideia de continuidade era um lenitivo. Nesse ínterim, o chofer anuncia que eles haviam chegado ao destino. Justino pediu que ele entrasse na garagem e, quando o motorista abaixou o vidro do automóvel, o segurança, reconhecendo Justino, abriu passagem e enviou um sinal pelo rádio para alguém alhures.

A secretária estava concentrada em alguma tarefa quando, olhando por cima da armação vermelha de seus óculos, viu Justino entrar. Os dedos da moça se moviam rápido pressionando continuamente as teclas do computador, produzindo um som ambiente ritmado e constante. Ela parou o que estava fazendo, mas não ouviu resposta ao cumprimento que dirigiu ao seu chefe. Continuava a repetir a saudação cordial dia após dia sem se importar se recebia ou não uma resposta. Na verdade jamais houve qualquer resposta, mas ela acreditava que aquilo fazia parte de seu pacto laborativo. Não que isso importasse, mas a verdade é que naquele dia Justino deveria ter chegado pelo menos uma hora antes daquele horário. A hesitação daquela manhã o havia atrasado.

Quando Justino notou o assistente se aproximando com a sua toga nas mãos, ele pensou que talvez aquele não fosse um bom dia para envergar as vestes talares. O meirinho, cioso, o acompanhou e, antes de puxar a cadeira para que ele se sentasse, depositou o manto negro sob seus ombros como o faria se o estivesse estendendo em um cabide. Ajeitou uma ponta caída e depois se afastou para ultimar outras medidas de estilo.

Seus pares procediam aos derradeiros os ajustes antes do início da sessão e o presidente do colegiado respirou aliviado ao vê-lo chegar exibindo a expressão resoluta e decidida que lhe era peculiar. Os trabalhos foram iniciados, o secretário promoveu a leitura da ata da sessão anterior que logo em seguida foi aprovada. Foi apregoado o primeiro caso da pauta. Um dos colegas de Justino, o decano, procedeu à leitura de seu longo voto-vista, pelo qual, pedindo vênia à relatoria - e rompendo com a carcomida e decrépita estabilidade das decisões daquela alta corte -, acompanhava a divergência, empatando a série em dois a dois.

Todos os presentes estavam suspensos, pois o caso envolvia questões muitíssimo sensíveis e tinha o potencial de subverter a ordem econômica. Ainda que não permitisse transparecer qualquer emoção, Justino sentiu o impacto silencioso de todas as atenções se voltando para ele. O resultado, seja ele qual fosse, formaria um precedente que doravante modificaria a forma com que os cidadãos se relacionavam com o Estado. Ninguém era capaz de prever nada, contudo o mais provável era um novo adiamento, um novo pedido de vista. Onde estaria a Dagmar?

O presidente então indaga: “como vota o eminente Ministro João Justino de Carvalho Maciel?”

Com o relator, senhor presidente...

Com o relator.