Prezado Laurentino Gomes,
Espero que possa perdoar minha ousadia em me dirigir a você para comentar minha leitura do seu último livro.
Trata-se, claro, do 1822. No qual você se digna a relatar “como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado.”
Antes de mais nada, aceite minhas sinceras e merecidas congratulações pela sua obra. Não falo, é evidente, apenas do 1822, pois acredito que o projeto que começou com a publicação do 1808 é um só, de forma que os elogios devem se estender ao livro anterior. Aliás, voltarei a tratar do 1808, por certo que a comparação entre os livros me parece inevitável.
Você acertou em cheio, Laurentino, meu caro! Esse país precisava de um estímulo desses para que, quem sabe no futuro, nosso povo tenha mais consciência do processo de formação de nossa cultura e pare, de uma vez por todas, de se comportar como se o Brasil tivesse sido inventado em 1958, com a vitória na Copa da Suécia.
Inclusive, a nossa falta de apego às nossas raízes foi oportunamente lembrada na dedicatória do 1822. Dedicatória brilhante, registre-se! Até gostaria bastante ter sido um professor de História, mas escolhi ser advogado. Um advogado que se define como um historiador diletante. Sou um apaixonado pela História, que padece o grande mal de viver em um “país sem memória”, se me permite a utilização da expressão. A dedicatória, portanto, não poderia ser mais acertada. Lembrei-me de um professor de história que tive, que além de muito carismático, era dono de uma voz potente que se alastrava por todos os cantos da classe e nos obrigava a prestar atenção nele, mesmo se não quiséssemos. Era inútil resistir às suas exposições sobre o mundo romano, as invasões bárbaras, o cristianismo ocidental, a idade média, a renascença, o mercantilismo até chegar às grandes navegações. Porém, a potência vocal não era o que verdadeiramente distinguia esse saudoso mestre, nada disso. O vultoso interesse que suas lições despertava irrompia, isto sim, da paixão com que ele tratava o tema e de sua abordagem sempre entusiástica e vibrante, que era capaz de nos fazer olhar pela janela por um instante e imaginar uma horda de hunos, liderados pelo invencível Átila, tomando a escola de assalto e espalhando o terror com suas flechas certeiras. Meu antigo professor de História, de quem nunca mais tive notícias, é um dos que mereceram a sua honesta homenagem, Laurentino.
Foi assim que nem bem havia chegado ao primeiro capítulo e já estava gostando muito de ler 1822. O tratamento dispensado aos membros da Casa de Bragança, a família real Portuguesa, é um dos pontos altos de ambos os livros. Os integrantes da realeza portuguesa, que desembarcaram no Brasil em 1808, eram figuras de fato pitorescas, uma rainha louca, um príncipe regente tímido e que não raro levou a pecha de covarde, que era casado com uma espanhola indomável em todos os sentidos e reputada por levar uma vida amorosa agitada. Não demorou para que esses personagens históricos se tornassem aquelas personagens caricatas, sempre tratadas com certo desprezo e troça por nós brasileiros. No 1808, você já havia demonstrado que a “fuga para o Brasil” foi na verdade uma retirada estratégica, que garantiu a permanência da dinastia Bragança no trono – coisa rara em se tratando da Europa continental sob Napoleão –, o surgimento de uma nova nação, o Brasil que se tornou a capital do império e se lançou para o mundo e, ao final, resultou em dois membros do clã reinando, um de cada lado do Atlântico. Em 1822 quem surge com ares de herói nacional é D. Pedro, comumente injustiçado no Brasil, que ignora as façanhas perpetradas por ele nos dois continentes, nos quais foi rei e imperador, desposou uma princesa Habsburgo, proclamou a independência, venceu uma guerra civil improvável e, ao abdicar ambas as coroas, deixou um filho e uma filha reinando respectivamente no Novo e no Velho Mundo. Um príncipe que morreu bastante jovem e ajudou a mudar a face do mundo em sua curta e vibrante trajetória.
Lord
Cochrane
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Perceba, que a leitura do seu 1822 me despertou a curiosidade e o desejo de aprofundamento nos estudos de personagens e fatos históricos. Sem dúvida que essa é uma qualidade que só os bons livros possuem: uma boa leitura atrai, recomenda, encadeia outras.
Confesso que senti falta de uma maior participação do legendário Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, um dos amigos mais próximos do Imperador D. Pedro I e um dos personagens mais caricatos do período. São tantas e tão peculiares as histórias em torno do Chalaça, tantas e tais galantes e admiráveis aventuras, que penso que caberiam alguns esclarecimentos que ajudassem a trazer a luz sobre o Conselheiro Gomes, o eterno bon vivant, que teve a vida explorada, contada em forma de memórias, no excelente romance de José Roberto Torero.
Por outro lado, a projeção que o seu primeiro livro alcançou o tornou referência literária. Hoje em dia, quando se pensa em História do Brasil, os seus livros, com justiça, são os primeiros a serem lembrados pela maioria das pessoas. Isso é fantástico, mas é também uma grande responsabilidade. Tenho certeza, Laurentino, meu caro, que você não ignora a extensão desta responsabilidade, mas mesmo assim, já que me propus a escrever-lhe esta carta, dedicarei algumas linhas para tratar de algumas inconsistências – que considero graves – que podem ser observadas no decorrer da obra comentada.
D. Pedro,
o monarca das quatro coroas
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Ademais, em minha modesta opinião, é terrível que você próprio, o autor, se utilize do termo “livro-reportagem” para se referir à sua obra. Soou-me como uma pseudo-justificativa de um jornalista por estar escrevendo sobre História, quando isso me parece totalmente prescindível, na medida em que o jornalista é criterioso e trata sua obra com elevado rigor técnico.
Homenagem
da Maçonaria: Comenda
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Para não ficarmos apenas nesse exemplo poderia falar de algumas correntes controvertidas que são lançadas em meio ao texto sem a devida contraposição com outras teses e sem a indicação das fontes, como ocorre, por exemplo, no capítulo dedicado à maçonaria, em que você se refere à simbologia maçônica presente na arquitetura de Washington D.C. e se limita a dizer que a presença dos símbolos foi comprovada por Dan Brown em O Símbolo Perdido. Ora, Laurentino, como todos sabemos Dan Brown é um romancista, de maneira que não se deve tratar seus ótimos livros, notadamente as polêmicas teses neles presentes, como se fossem artigos científicos, conquanto a Igreja Católica e muitos de seus fiéis o tenham feito em relação a O Código Da Vinc”. Você se lembra da confusão que aquilo causou?
Diga-me uma coisa, Laurentino: de onde você tirou a idéia de colocar as notas explicativas ao final de cada capítulo? Não gostei nenhum pouco daquilo, meu amigo. Em alguns livros, os autores (ou editores, resta saber) decidem posicionar as notas explicativas nas últimas páginas e isso, ao que sinto, prejudica a leitura, pois obriga o leitor a parar até encontrar a página, no final do livro, com a referência. Outro efeito desse sistema é fazer com que o leitor apenas ignore as notas e, portanto, termine por não apreender parte da mensagem, o próprio autor, aliás, é prejudicado, pois a sua mensagem acaba sendo apreendida apenas parcialmente. Você (ou seu editor) conseguiu fazer algo ainda pior: a opção pelas notas explicativas ao final de cada capítulo chegou a me irritar, devo confessar. O que há de errado com as boas e velhas notas de roda pé, Laurentino? Pense nisso nos próximos.
O túmulo
de D. Pedro no Mosteiro de Alcobaça:
obra-prima da escultura gótica em
Portugal
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(i) o 1831, que poderá abordar os eventos e transformações ocorridos no Brasil durante a Regência e o Segundo Reinado, tendo D. Pedro II como protagonista;
(ii) o 1849 (ano do nascimento do grande abolicionista Joaquim Nabuco), que contará como o Pernambucano, que foi político, diplomata, historiador, jurista, jornalista e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, se tornou um dos expoentes do processo que possibilitou que, anos mais tarde, uma princesa da Casa de Bragança, a primeira senadora do Brasil, assinasse a lei que aboliu a escravatura;
(iii) o 1870, que poderia tratar da Guerra do Paraguai e de como o nosso Duque de Caxias liderou o exército brasileiro no longo conflito e derrotou Solano López, o Napoleão do Prata;
Estátua
equestre de D. Pedro IV de Portugal (D. Pedro I do Brasil)
na Praça da
Liberdade, Porto, Portugal.
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(v) o 1944, que contará como o último Marechal de Campo do Exército Brasileiro, Mascarenhas de Morais, liderou a Força Expedicionária e marcou a primeira ação militar da antiga colônia na Europa;
(vi) lista que poderá se estender indefinidamente até se chegar aos livros 2006 e 2011, que contarão respectivamente as trajetórias das duas primeiras mulheres a ocuparem respectivamente as presidências do Supremo Tribunal Federal e da República.
O certo, caro Laurentino, é que continuarei acompanhando com vivo interesse essa saga. Entrementes, espero que tanto o 1822 quanto os próximos sejam objeto de uma campanha de publicidade até mesmo mais maciça e agressiva do que ocorreu com o 1808, pois isso certamente irá fomentar a pesquisa e as publicações acerca da História do nosso país, território que, infelizmente, permanece pouco explorado.
Cordiais saudações.
Seu leitor
C.B.