Por Daniel Dreiberg
Será possível estudar um pássaro tão
de perto, observar e catalogar suas peculiaridades em detalhes tão minuciosos,
que o mesmo se torna invisível? Será possível que, enquanto medimos
fastidiosamente a envergadura de suas asas ou o comprimento de seu tarso,
acabamos perdendo a visão de sua poesia?
Será possível que, em nossas
prosaicas descrições de plumagens marmóreas ou vermiculadas, perdemos a visão
de pinturas vivas, uma sucessão de tons de marrom e dourado que envergonharia
Kandinsky ou explosões de luz e cor à altura de Monet? Eu creio que sim.
Acredito que, ao estudarmos nosso objeto com a sensibilidade de um estatístico
ou de um dissector, nós nos distanciamos cada vez mais das maravilhas e
encantamentos da imaginação.
A menos que nossas observações sejam
imbuídas de discernimento poético, elas não passarão de gemas opacas, pedras
semi preciosas que não valem a pena ser colecionadas.
Olhando para um falcão, notamos
pequenas diferenças na largura das linhas de haste da plumagem inferior, onde
os egípcios viram Horus. Porém, até conseguirmos transformar nossos simples
conceitos em visões genuínas, até nossos ouvidos estarem maduros para captar
uma sinfonia no estridente pandemônio de um aviário, talvez tenhamos adquirido
um hobby, mas não uma paixão.
Eu tinha verdadeira paixão por
corujas quando criança. Durante os longos verões no início dos anos cinquenta,
enquanto o resto do país observava os céus à procura de discos voadores e
mísseis soviéticos, em plena noite, eu costumava correr pelos campos da Nova
Inglaterra para meu ponto de obervação. Ali posicionava-me e esquadrinhava o
céu na esperança de ver um tipo de espetáculo diferente: o vôo de uma coruja em
busca de alimento.
Mas minha paixão perdeu-se
inadvertidamente, como minério cintilante metamorfoseado num banal e opaco
sistema de arquivos. Essa mudança paulatina passou despercebida e tornou-se um
hábito. Só recentemente consegui vislumbrar o filão precioso através da poeira
acumulada de estudos metódicos e acadêmicos: no estacionamento de um hospital
em Maine, quando ia visitar um amigo que fora internado, eu divisei de repente
o pio de uma coruja caçadora.
Tratava-se de um velho pássaro. Seu
grito decrépito propagava-se loucamente através do céu escuro e gelado. O som
me deixou petrificado. Consiste em falácia a crença de que corujas gritam para
atrair as presas. Seu grito, na verdade, é uma voz do Inferno, capaz de
transformar ratos selvagens em estátuas e prender doninhas ao solo. Em meu
instante de paralisia, postado no brilhante calçamento entre os carros
estacionados, eu compreendi a razão oculta daquele som. Com aguda clareza, do
mesmo modo que o compreendia quando era garoto. No infinito momento que se
descortinava, senti-me solidário com as pequenas criaturas que, mais vulneráveis
que eu, quedavam-se imobilizadas de medo. Trepada no galho com fixidez
desconcertante, sorvendo a escuridão pelas pupilas dilatadas e sedentas, a
coruja localizara seu jantar. Ignorando qual de nós havia sido escolhido, eu
fiquei de pé, congelado, junto com os roedores do campo. Meu coração martelava
à espera do súbito ataque das garras afiadas. As penas das corujas são macias e
fofas, e não fazem um ruído sequer quando investem através do ar. Sua vítima
nunca sabe o momento em que será atacada.
Então, em algum lugar, na sombra do
crepúsculo que circundava o hospital iluminado, pareceu-me ter ouvido uma
pequena criatura emitir seu derradeiro clamor. Os segundos se arrastavam. Eu
podia mover-me novamente, assim como todos os invisíveis habitantes da mata.
Aliviados. Salvos. A coruja não mais gritava por nós. Podíamos continuar com
nossos afazeres noturnos, com nossas vidas. Não estávamos nos contorcendo, sem
forças, na escuridão sufocante e fétida, com a cabeça entrando pela goela do
predador e nossos rabos pendendo, patéticos, do bico da cimitarra, antes de
nossas patas posteriores e cintura pélvica finalmente serem lançadas para fora.
Embora eu tivesse recuperado minhas
habilidades motoras, descobri que meu equilíbrio não retornaria com a mesma
facilidade. O impulso de experimentar, e não simplesmente de registrar,
reascendeu-se dentro de mim, estimulando os processos do pensamento e
auto-avaliação que me levou a este artigo.
Como já deixei transparecer antes,
não significa que eu tenha abandonado os esforços e pesquisas acadêmicas
relacionadas a esse campo para fugir e viver uma existência primitiva nos
bosques. Pelo contrário: dediquei-me aos estudos com ânimo renovado,
contemplando fatos insípidos e descrições áridas sob a mesma luz que os
favorecera quando eu era criança. A compreensão científica do movimento
sincronizado e articulado das plumagens de uma coruja durante o vôo não impede
a apreciação poética desse mesmo fenômeno. As duas se realçam: um olho mais
lírico empresta aos dados frios o
romance do qual eles se divorciaram há muito tempo.
Mergulhando avidamente nas
referências de livros empoeirados, eu deparei com passagens esquecidas, que me
deixaram sem fôlego, e tomos de aspecto sombrio que se revelaram como arcas de
tesouro contendo maravilhas iridescentes. Redescobri antigos trechos de prosa
descritiva e a violenta essência de seu conteúdo. Tropecei, mais uma vez, no
conto absorvente de T. A. Coward sobre seu encontro com a Águia Coruja: “Na
Noruega, vi um pássaro que fora pego em seu próprio ninho, mas ele não só
assumiu uma atitude típica de aterradora, como fez freqüentes investidas ao
arame, golpeando-o com os pés. Como a plumagem eriçada, moldou sua cabeça entre
as asas e disparou uma rajada de altos estalos com seu bico. Mas o que mais me
impressionou foi o cintilar intenso dos seus olhos enormes.”
É claro que também há o conto de
Hudson sobre a Águia Coruja magalânica que ele feriu na Patagônia: “Os olhos
eram de uma cor laranja brilhante, mas, cada vez que eu tentava me aproximar do
pássaro, eles se tornavam grandes globos ígneos com pupilas negras que
dardejavam faíscas amarelas no ar.” Em palavras quase esquecidas, como as acima
mencionadas, eu aprendi um pouco de intensidade apocalíptica que senti naquele
estacionamento em Maine.
Atualmente, quando observo um
espécime de Carine Noctua, tento
transcender o moro cinza de suas unhas e as manchas brancas dispostas em linhas
caprichadas. Em vez disso, procuro olhar o pássaro cuja imagem os gregos
entalharam sem suas moedas: empoleirado tranquilamente no ombro da deusa Pallas
Athena, compartilhando em silêncio de sua sabedoria imortal.
Em lugar de medirmos os tufos de
penugem que cobrem seus ouvidos, talvez devêssemos especular o que essa ave
ouviu. Talvez, se considerássemos a maneira como ela segura seu galho, com duas
garras à frente e outra atrás, devêssemos parar por um momento e admitir que tais
garras podem ter, em alguma ocasião, arrancado sangue do ombro de Pallas.
MOORE, Alan. Watchmen: um irmão para os dragões. Tradução e adaptação: Estúdio
Criarte. nº 4. DC Comics Inc. São Paulo: Editora Abril, 1989, p. 29-32.