A Voz do Vencedor
Agora que começo a traçar estas linhas, acabo de regressar da Livraria Cultura. Naturalmente, um passeio perturbador para qualquer bibliófilo, por menos obsessivo que seja. Em meio a uma variedade infindável de títulos e volumes disponíveis, me detive alguns minutos admirando um: “Sharpe's Waterloo”.
Tratava-se de uma edição da HarperCollins de 2010, classificada como “paperback”, do tipo que, por aqui, poderíamos definir simplesmente como “brochura”, se fosse possível – claro está – não considerarmos que depois que os Beatles cantaram “Paperback writer. Please, sir or madam, can you read my book?” o termo ganhou outros significados correntes. Sim, pois, após essa intervenção pontual da cultura pop, “paperback”, mais do que nunca, passou a ter a conotação geral de publicação de baixo custo, quiçá baixa qualidade, seja do insumo empregado na própria edição, seja relativa à aptidão e aos rudimentos literários do escritor. Seguramente, trata-se de avassaladora bobagem, pois todos os grandes escritores publicados nos Estados Unidos e na Europa possuem edições em “paperback”, o que, a toda evidência, diminui sensivelmente o custo final do produto e o grande beneficiado não é outro senão o leitor.
Pois bem eu dizia que segurei o “Sharpe's Waterloo”. Por um tempo, enquanto o examinava com o merecido cuidado, colhendo algumas frases aqui e ali, imaginava quanto tempo será necessário para esse título estar disponível em uma dessas conhecidas e caras edições brasileiras da Editora Record. O cenário é desanimador para os ávidos fãs de Sharpe, entre os quais, seguramente, me incluo. Neste mês o lançamento de “O Ouro de Sharpe” foi aguardado com grande ansiedade e, como resultado, o devorei instantaneamente, apenas para, quase instantaneamente, retornar ao status “aguardando o próximo lançamento”. Exatamente como estive nos últimos meses, depois de “A Águia de Sharpe”.
Soube [1] que o próximo título de Bernard Cornwell a ser lançado por aqui será o inédito “The Fort”, de maneira que a versão brasileira de “Sharpe's Escape”, o próximo seguindo a ordem cronológica histórica (que, como sabemos, difere da ordem em que os livros foram escritos), muito provavelmente será a única aparição inédita de Sharpe e Harper em terras brasileiras em 2011.
Tubo bem, entendo que há questões contratuais envolvidas, outras, ainda, que dizem respeito a direitos de propriedade intelectual, bem como não se pode ignorar a complexidade das negociações e tratativas entre o autor e seus editores brasileiros e outras coisas do gênero. Porém, não há como não considerar que Sharpe perdeu o fôlego por aqui, infelizmente.
Por outro lado, invariavelmente, um novo livro de Bernard Cornwell no Brasil vem com as inscrições “do mesmo autor das séries As Crônicas de Arthur e A Busca do Graal”. Lá fora não diriam menos que “Bernard Cornwell is the author of the Richard Sharpe novels”. E assim, aos fãs brasileiros resta o referido status: “aguardando o próximo lançamento com muita ansiedade”.
Registrada a introdução acima, longa, porém necessária; registrado o meu inconformismo com as circunstâncias (todas elas) que impedem que a obra esteja integralmente disponível no Brasil, e antes que o presente comentário perca seu sentido por completo, é hora de tratar de “O Ouro de Sharpe”.
Pois bem, o livro é bem estruturado. Toda a série é bem planejada. Em 1810, encontramos um Sharpe muito mais maduro e no pleno exercício de um atributo que, respeitadas as competências dos diversos níveis hierárquicos galgados ao longo da carreira, sempre o distinguiram: a liderança.
O Capitão Sharpe de “O Ouro de Sharpe” é um oficial fuzileiro, um autêntico casaca-verde, ainda que lidere, além de seus fuzileiros, um regimento de casacas-vermelhas que esteve com ele no episódio narrado no livro anterior: a tomada da Águia. Inclusive, a fama e a admiração que essa façanha inspiram em todo o exército aliado, é bastante identificável na obra. A todo momento, pois, Sharpe é merecidamente saudado pela distinção que alcançou em Talavera.
Além disso, é óbvio, trata-se de Cornwell, o que garante a precisão e a riqueza de detalhes. É impressionante a capacidade do autor de encadear os acontecimentos e não deixar espaço para a menor contradição ou obscuridade, que seriam (se existissem) amplamente justificáveis, dado o fato de haver um longo espaço de tempo entre a publicação original de cada um dos livros, e também por cada um deles ser – até onde isso é possível – uma história independente, além do fato de que, conforme já dito, a produção original não seguiu a ordem cronológica histórica. Um exemplo desse, digamos encadeamento lógico e ritmado do enredo, quando consideramos todos os livros, diz respeito ao próprio regimento que Sharpe orgulhosamente lidera e integra: os Fuzileiros.
Sim, pois quando Sharpe ascendeu ao oficialato, promovido pelo próprio Duque de Wellington, após salvar a sua vida no calor da Batalha de Assaye, na Índia, o então Alferes, depois de uma curta passagem pelo 74º Regimento do Rei, recebeu a ordem de trocar a casava vermelha tradicional pela verde e servir no 95º Regimento de Fuzileiros e aquilo soou quase como uma punição:
“Sharpe presumiu que o 95º fosse aquele tipo de batalhão que era formado às pressas em tempos de guerra, munidos de refugos de outros regimentos e composto por ratos de esgoto descartados por todos os outros sargentos de recrutamento. Até o fato de usarem casacas verdes soava mal, como se o exército não se desse ao trabalho de desperdiçar pano vermelho e decente com eles. Eles provavelmente iriam se dissolver em um caos em sua primeira batalha.” [2]
A narrativa acima data do ano de 1803, pouco antes de Sharpe participar do cerco a Gawilghur. Sete anos se passaram desde então, o suficiente para os Fuzileiros se tornarem a elite do exército inglês. Cornwell explica como ninguém as vantagens e desvantagens de se trocar a velocidade na recarga do mosquete tradicional de alma lisa, pela precisão e alcance do Fuzil Baker (aposta que os franceses jamais fizeram), de modo que as façanhas dos casacas verdes são enaltecidas a todo momento em “O Ouro de Sharpe”, podendo-se perceber o quanto eles evoluíram:
“Os fuzileiros eram a elite do exército, os mais bem treinados, mais bem equipados, a melhor infantaria de um exército que alardeava os melhores soldados a pé de todo mundo.” [3]
Nesse contexto, confesso que fiquei bastante intrigado com as várias exortações feitas pelo autor à infantaria inglesa. Segundo Cornwell os infantes ingleses eram os melhores do mundo, os mais rápidos em recarregar o mosquete e tal expertise fora adquirida por serem eles os únicos em todo o mundo civilizado a treinarem com munição verdadeira. Ao que entendo, com a devido acatamento, o argumento é, no mínimo questionável: em primeiro lugar, não creio que houvesse unanimidade em tal aclamação, pois os franceses, por exemplo, certamente diriam que os soldados da mítica (e invencível até sofrer a sua primeira e única derrota em Waterloo) Guarda Imperial, os “imortais”, como eram conhecidos, formavam a melhor infantaria do mundo; além disso, como o próprio Cornwell reconhece, os casacas-vermelhas eram formados pela escória da sociedade inglesa: ladrões, estupradores e delinqüentes de todo gênero que se alistavam para se evadirem do domicílio de suas respectivas culpas e para frustrarem a devida persecução penal. Ora, essa ralé formava um exército que não podia ter o moral mais elevado que os franceses, por certo que sofriam severas punições, como o açoitamento, por exemplo, além do fato de terem um líder muito menos carismático do que os franceses tinham em seu imperador. O simples fato de treinarem com munição verdadeira não os transformaria, como em um passe de mágica, em um esquadrão de elite. É bem verdade que no final eles foram os vencedores, mas até esse argumento reforça a suspeita, pois – como não pode ser segredo para ninguém – a história sempre é contada pelos vencedores e é exatamente isso que Bernard Cornwell, como bom inglês que é, está fazendo. Fazendo brilhantemente, é preciso dizer.
O nacionalismo de Cornwell não raro o faz ser injusto em relação aos franceses, mesmo quando o assunto não é especificamente as guerras napoleônicas. A rivalidade entre França e Inglaterra, que não está em discussão aqui, é apenas um dos fatores que informam essa postura do autor. Sua versão dos personagens históricos Napoleão e Wellington demonstra isso. A certa altura dos acontecimentos de “O Ouro de Sharpe” Napoleão é descrito como “um homem pequeno” e prepotente, por achar a vitória na península era apenas uma questão de tempo. Por sua vez, o Duque de Wellington aparece protegido por uma áurea quase sagrada: frio, impenetrável e detentor de um caráter decisivo e do gênio capaz de reverter os rumos daquela guerra que parecia perdida para os ingleses com a aproximação de Masséna [4].
Os ingleses de todas as épocas, ao se referirem a Napoleão, apreciam utilizar-se do termo “pequeno”. Uma das grandes falácias da História escrita por eles, pois o mais certo é que as próprias alusões ao fato de estatura de Napoleão ser supostamente abaixo da média, não se confirmam, havendo relevantes suspeitas de que essa grande “bravata” tenha sido introduzida historicamente no subconsciente popular por um erro original de conversão, porquanto as medidas utilizadas no Reino Unido e na França no Século XIX eram distintas. Claro que o Duque de Wellington soube ser melhor que isso, até porque ele não era inglês, mas, isto sim, irlandês. Segundo sua biógrafa Elizabeth Longford, Sir John le Couteur afirmou que quando perguntaram a Wellington quem eram os grandes generais da época, sua resposta foi peremptória: “Desta época, de épocas passadas ou de qualquer outra: Napoleão.” [5]
Napoleão, em que pese tenha se referido a Wellington em tom ressentido nas “Memórias de Santa Helena”, acabou por admitir que o Duque “tinha todas as suas qualidades, com o acréscimo da prudência.” [6] É de se ver que os grandes homens souberam ser mais justos e equânimes entre si do que seus biógrafos e historiadores jamais puderam ser.
Voltando ao tema inicialmente proposto, tenho que nessa nova aventura de Sharpe estão presentes todos os elementos que distinguem a série, que necessariamente passam por uma boa dose de aventura, de drama e da precisa ambientação histórica de Bernard Cornwell. Tampouco falta-lhe uma bela heroína: Teresa, que me pareceu uma versão feminina do próprio Sharpe de modo que, não fosse ela inatingível para ele, pela primeira vez nosso herói pareceria, de fato, estar bem acompanhando. Também não falta um vilão furtivo e poderoso. Nesse caso ele é também elegante e possui todas as vantagens em relação a Sharpe, o que me fez sentir saudades do velho Sargento Obadiah Hakeswill.
Se o livro anterior, “A Águia de Sharpe” teve a batalha de Talavera como ponto alto, neste acompanhamos a tragédia de Almeida e o início da construção das Linhas de Torres Vedras, a gigantesca obra de engenharia construída secretamente por ordem do próprio Duque de Wellington, que mandou reconhecer o terreno e fortificar os pontos mais convenientes e defensáveis, criando um sistema de defesa ímpar : três linhas com um total de 152 redutos e 600 peças de artilharia, um sistema de comunicações com postos de sinais, defendido por 36.000 portugueses, 35.000 britânicos, 8.000 espanhóis e cerca de 60.000 homens de tropas portuguesas não regulares, estendidos ao longo de mais de 88Km. [7]
Por coincidência ou não, o lançamento de “O Ouro de Sharpe” ocorre em 2010, ano em que comemora-se os exatos 200 anos dos eventos ali narrados, notadamente, pelos orgulhosos portugueses, da construção das Linhas de Torres Vedras.
Quando cheguei ao final da leitura, que foi mais rápida do que eu gostaria que fosse, e, enfim, alcancei a tradicional “Nota Histórica”, que para mim sempre foi uma das partes mais prazerosas da leitura dos livros de Bernard Cornwell, o autor, que parece antever e entender os problemas editoriais que encontramos aqui no Brasil, brinda-nos com o único lenitivo possível contra enorme ansiedade que é a esperança e o faz garantindo que Sharpe e Harper continuarão sua marcha.
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1 O furo é do camarada Micheal Hasfel e está disponível em: http://bernardcornwellbr.vilabol.uol.com.br/, acesso em 15/12/2010, às 01h00min.
2 CORNWELL, Bernard. A fortaleza de Sharpe. Tradução de Sylvio Gonçalves. Título original: Sharpe’s fortress. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.68.
3 CORNWELL, Bernard. O Ouro de Sharpe. Tradução de Alves Calado. Título original: Sharpe’s gold. Rio de Janeiro: Record, 2010, p.137.
4 André Masséna, general francês que comandou a terceira invasão francesa de Portugal, sendo feito Príncipe d'Essling por Napoleão, mas que não logrou capturar Lisboa conforme o plano original, sendo detido pelas famosas Linhas de Torres Vedras.
5 LONGFORD, Elizabeth. O Homem que venceu Napoleão: a História do Duque de Wellington. Tradução de Marcos Malvezzi Leal. Título original: Wellington: a New Biograph. São Paulo: Madras, 2004, p.132.
6 LONGFORD, Elizabeth. O Homem que venceu Napoleão: a História do Duque de Wellington. Tradução de Marcos Malvezzi Leal. Título original: Wellington: a New Biograph. São Paulo: Madras, 2004, p.131-132.
7 Informações do excelente Portal de comemoração ao bicentenário da construção das Linhas de Torres Vedras, disponível em:
http://www.linhasdetorresvedras.com/historia/, acesso em 15/12/2010, às 02h00min.