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sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A Guarda Morre...


mas não se rende

Era Precisamente 1h30min.
De repente, numa extensão de mais de quarto de légua, pareceu a terra entreabrir-se e vomitar o inferno. Grande frêmito inclino o centeio, fez tremer o solo e todos os seres vivos sentiram na medula a palpitação que produz o estrondo do raio. Foi o fragor percebido a cinquenta léguas de distância.
A um sinal do Príncipe de Moskova [Ney], começou a grande bateria a castigar a posição inglesa.
Marcel Dupont.

O livro de Marcel Dupont é um belíssimo relato de uma das mais famosas batalhas de todos os tempos, que se lê como um romance, mas, sem a menor dúvida, trata-se de um livro para iniciados. Estão, pois, sujeitos a ficarem relativamente perdidos em meios aos muitos nomes de pessoas e lugares que o autor declina a todo momento, aqueles leitores que, porventura, ignorem o panorama histórico do período conhecido como Os Cem Dias – lapso temporal que compreende os eventos desde a volta triunfal de Napoleão da Ilha de Elba, passando pela fuga de Luis XVIII, a nova aclamação do Imperador,  o advento da novel coalizão, a decisão de Napoleão de fazer o primeiro movimento de ataque na guerra inexorável, até a segunda abdicação, ocorrida após a vitória dos aliados em Waterloo.

Assim, para uma compreensão completa da narrativa, é recomendável, sobretudo, que o leitor esteja a par dos eventos ocorridos nos dias anteriores à Batalha de Waterloo, pois o autor se abstém em pormenorizar as duas importantíssimas batalhas havidas na véspera da grande hecatombe do Monte Saint-Jean: as Batalhas de Ligny e Quatre-Brás, que tiveram seriíssima repercussão em tudo o que fatalmente ocorreu no dia seguinte nas proximidades do lugarejo cujo nome até então era obscuro, mas que, após o ocorrido, ganhou eterna notoriedade, Waterloo.


Portanto, uma vez que o autor parte do pressuposto que os referidos eventos são do conhecimento geral de seu público, cita-os sem nenhuma preocupação pedagógica, de maneira que o leitor que os desconhece é pego de surpresa e, a não ser que muito persevere, pode terminar, se cansando da leitura e, com isso, deixar de acompanhar um relato romântico e primoroso da Batalha de Waterloo. Porém, se você se interessou pelo livro e se enquadra no gênero de leitores acima aludido, não há razão para imaginar que precisa antes de tudo se especializar em guerras napoleônicas para que A Guarda Morre... seja inteligível. Hoje em dia, felizmente, há diversas possibilidades de pesquisa acerca de qualquer tema na internet e um leitor minimamente curioso não encontraria dificuldades em apreender os pressupostos necessários ao bom entendimento da obra de Dupont em pouco tempo. Por meu turno, para antes e depois da leitura, ouso indicar o site brasileiro A Batalha de Waterloo, que promove uma análise gráfica da batalha do dia 18 de junho de 1815, com informações minuciosas e precisas. Outra forma de se preparar e ainda gozar de aprazível entretenimento é assistir ao filme de 1970, do diretor Sergey Bondarchuk, Waterloo.
Elizabeth Thompson (1875): o 28h Regiment formando um quadrado em Quatre-Brás

Tornando, porém, a tratar do livro em comento, conforme o próprio título faz questão de lembrar A Guarda Morre... foi pensado para homenagear os feitos heróicos da Guarda Imperial. A Guarda representava então a expressão máxima da disciplina militar e da bravura, a fina flor da soldadesca francesa. Os valorosos soldados que a compunham eram não menos que a elite em meio à elite, crème de la crème. Napoleão mimava seus Velhos Resmungões e eles lhe devotavam uma fidelidade canina. A Guarda Imperial gozava de grande reputação à época dos acontecimentos descritos no livro e Dupont descreve como esses soldados de escol mantiveram a sua fama mesmo diante da derrocada na fatídica tarde lamacenta, em meio aos milhares de mortos franceses que se bateram contra o restante da Europa em Waterloo.

Manhã da batalha de Waterloo, por Ernest Crofts: Napoleão analisa um mapa ao fundo

Trata-se, naturalmente, de uma visão romântica que enaltece a coragem desses guerreiros, que por seu turno demonstraram total desapego diante da morte e do aniquilamento. Homens movidos por um ideal, pelo dever de bem servir e, sobretudo, pela devoção ao seu Imperador, ninguém menos que o Vencedor de Rivoli, Marengo, Pirâmides, Arcole, Austerlitz, Wagram, Eylau dentre outras batalhas que se tornaram páginas indeléveis nas páginas da historiografia militar. Em Waterloo, após o golpe final dos aliados, quando Wellington e Blücher encontraram-se para as recíprocas felicitações ante o resultado exitoso obtido (momento, aliás, em que Blücher sugeriu que dessem o nome de Batalha de la Belle-Aliance – nome duplamente apropriado em seu entender, por ser a designação de umas das herdades do local e ainda teria a vantagem de ressaltar a importância da participação prussiana no resultado final –, porém o velho prussiano não contava com a astúcia de Wellington que aquela altura já havia despachado um comunicado a Londres, em que dava conta que havia batido Napoleão em Waterloo, nome soava melhor em língua inglesa e ainda não possuía o inconveniente da francofonia), em meio ao caos generalizado e a debandada geral do exército francês, apenas a Guarda retirou-se de forma disciplinada e protegeu a retirada do Imperador nos últimos quadrados. A Guarda provou que morreria, mas não perderia sua honra. A Guarda, pois, morre, mas não se rende.

Napoleão I, por Ernest Crofts

Dupont procura não ressaltar participações individuais, preferindo atribuir o feito de bravura invulgar a toda a Guarda, desde soldados aos oficiais que cumpriram seu dever com lealdade e coragem incomparável em Waterloo. Porém, ninguém mais do que o general Pierre Cambrone, personifica mais o ideal de bravura da Guarda. Conforme relatado no livro, um dois últimos quadrados, que mantinha a disciplina sob castigo implacável, após perder vários homens, foi cercado pelo inimigo que, demonstrando todo o respeito que os valentes Peles de Urso inspiravam, franqueou aos combatentes a possibilidade de se entregarem, mantendo intacta sua honra, uma vez que já tinham dado seguidas demonstrações de singular bravura no caos que se observou ao final do conflito. Contudo, do centro do alquebrado quadrado da Guarda ouviu-se, pronunciado por Cambrone, uma simples palavra: Merde!, a seguir a metralha jorrou dos canhões ingleses aniquilando aqueles heróicos soldados, que mesmo encontrando a morte, mostraram que faziam jus ao epíteto de Imortais.

O Duque de Wellington, por Thomas Lawrence

Em alguns momentos o autor não se furta de utilizar um tom queixoso, como a lamentar os inúmeros erros cometidos pelos oficiais que deveriam ter ajudado Napoleão, mas que concorreram em grande escala para a sua derrota: Ney – a quem Napoleão chamava o Bravo dos Bravos e que teve cinco cavalos mortos durante a batalha –, e os ineptos Grouchy e D'Elron.

No geral, o autor não se furtou em descrever com tintas rubras de sangue o morticínio de Waterloo. Estima-se que, no total, entre franceses e aliados, tenham tombado 55 mil homens no campo de batalha, uma verdadeira hecatombe. Conforme deixa claro a frase colhida e transcrita acima à guisa de epígrafe, Dupont descreve com chocante precisão muitas dessas mortes, corpos mutilados e estraçalhados por bala de canhão e estilhaços de metralha, homens trespassados por baionetas e talhados por sabres, mortes atrozes produzidas seja pelo faiscar de milhares de fuzis, seja pelo crepitar de incontáveis mosquetes. Contudo, em que pese a atmosfera carregada da grande carnificina, Dupont exprime-se em um estilo fluído e elegante, convidando e estimulando o leitor a devorar as páginas de seu registro histórico que, a rigor, repise-se, se lê como a um romance.

Estátua de Cambronne em Nantes, França
Por fim cabe registrar que A Guarda Morre... possui duas edições brasileiras, a primeira de 1941, à venda em muitos sebos (inclusive aqui) e a mais recente, da Editora Biblioteca do Exército, de 2004 (tradução de Otávio Muger de Rezende), cuja capa reproduz um belíssimo óleo sobre tela de Ernest Crofts retratando a retirada francesa do campo de batalha de Waterloo.