E as pessoas não nos compreenderão, pois, antes da nossa, cresceu uma geração que, sem dúvida, passou estes anos aqui junto a nós, mas que já tinha um lar e uma profissão, e que agora voltará para suas antigas colocações e esquecerá a guerra... e, depois de nós, crescerá uma geração, semelhante à que fomos em outros tempos, que nos será estranha e nos deixará de lado. Seremos inúteis para nós mesmos. Envelheceremos, alguns se adaptarão, outros simplesmente resignar-se-ão e a maioria ficará desorientada; os anos passarão e, por fim, pereceremos todos. (Erich M. Remarque. Nada de Novo no Front. São Paulo. Abril: 1981, p. 230-231.)
Quem o vê
agora, esquecido de todos e de tudo à sua volta, corpo alquebrado pelo acúmulo
de dias, carcomido pelas escaras, não diria estar diante de um combatente.
Distinções de bravura foram muitas. O batismo de fogo foi na Itália, em Monte
Castelo, onde ele e seus camaradas, para o bem da humanidade e da democracia,
colocaram os chucrutes para correr. Muitos dos camaradas que o acompanharam
nessa jornada épica não voltaram para suas famílias e para seus negócios no
Brasil. Todos os que regressaram, porém, na medida do possível, tiveram cá suas
honrarias: um simples lenitivo, uma vez que o tributo de sangue não é o único
exigido dos heróis das grandes epopéias. Os mortos do campo de batalha e o
horror da guerra cobram o preço definitivo da lembrança, marca indelével que
distingue os que foram testemunha da demonstração cabal da intolerância. A
guerra não é senão a máxima expressão da maior de todas as misérias humanas.
Voltou outro do front, os seus logo notaram a mudança: o olhar perdido sempre a fitar o vazio, a confusão do pensamento, os pesadelos que jamais o deixaram em paz. Agora suas forças o abandonaram e nada representa, relegado aos maus tratos de enfermeiras ineptas, financiadas com o minguado soldo que ainda recebe. A doença grassou de pouco em pouco, como num cerco, conquistando pequenas vantagens dias após dia, mas, enquanto pôde, ele ostentou uma independência orgulhosa, posto que falsa. Antes do fim, viu-se que tudo não passava de vã ilusão. Agora havia um primo distante que administrava o curto estipêndio, não oferecia nenhum suporte emocional, mas pelo menos garantia que um teto lhe cobriria a cabeça nos últimos dias que inexoravelmente se aproximavam.
Não teve
filhos. O casamento durou poucos anos. A convivência marcada pela frustração
mútua e pelos surtos de violência doentia. O último capítulo ganhou várias
versões na crônica policial e ocupou o noticiário por anos a fio. Certa feita,
tendo ele chegado em casa inopinadamente, quando não era esperado, surpreendeu
os corpos de sua mulher e de um outro sujeitinho das redondezas entrelaçados,
rútilos de suor. Ele acrescentou sangue à mistura. Rios de sangue e de lágrimas
para lavar-lhe a honra conspurcada pela concupiscência da mulher. Antes que os
amantes esboçassem qualquer reação, sacou a velha Luger P08, um amuleto,
o butim que arrancou de um alemão que implorou para não morrer. Sua mulher o
encarou com firmeza mesmo sob a alça de mira da pistola alemã, legando-lhe, com
isso, mais uma imagem inolvidável ao rol pavoroso que trouxe de além-mar. Por
seu turno, o sujeitinho vil tentou se safar e morreu primeiro, abatido como o
reles animal que era, alvejado seguidas vezes até na arma não restasse um único
projétil. A seu turno, a mulher seguiu sem emitir qualquer ruído, sustentando o
olhar de desafio. Talvez por isso tenha sofrido mais que o amante. Demorou mais
a morrer: espancada, estrangulada, vilipendiada pela ira, um tônico diabólico a
serviço dos músculos do veterano. A cobra seguia fumando.
Consumado o ato, deixou para trás a cena do crime e nunca mais voltou àquela casa. Entregou-se à polícia ainda coberto de sangue, calado e com o mesmo olhar vazio com que cruzou o Atlântico na volta da Itália. Parte da sociedade, escandalizada, exigiu uma punição severa, única, exemplar. Permaneceu preso durante a instrução criminal até o julgamento. O caso instantaneamente havia se tornado emblemático: ora ele era descrito como o soldado que assassinou a esposa e o amante de forma fria e cruel, ora como o veterano da Segunda Guerra Mundial que agiu com retidão incensurável: o mesmo rigor, tanto na defesa da pátria, quanto na legítima defesa de sua honra.
Consumado o ato, deixou para trás a cena do crime e nunca mais voltou àquela casa. Entregou-se à polícia ainda coberto de sangue, calado e com o mesmo olhar vazio com que cruzou o Atlântico na volta da Itália. Parte da sociedade, escandalizada, exigiu uma punição severa, única, exemplar. Permaneceu preso durante a instrução criminal até o julgamento. O caso instantaneamente havia se tornado emblemático: ora ele era descrito como o soldado que assassinou a esposa e o amante de forma fria e cruel, ora como o veterano da Segunda Guerra Mundial que agiu com retidão incensurável: o mesmo rigor, tanto na defesa da pátria, quanto na legítima defesa de sua honra.
Seu advogado não foi nada menos que brilhante. Contudo, o processo apagou nele os últimos vestígios que restavam de sua vontade de viver e as sessões, os depoimentos, os procedimentos foram uma tortura. Havia feito um pacto consigo mesmo pelo qual os eventos da Itália permaneceriam lá, enterrados para sempre. Entretanto, foi obrigado a recordar o horror da ofensiva, o canhonaço dos diabos e a marcha colina acima até conquistar as casamatas e varrer de lá os malditos alemães. Na corte, a estratégia da defesa seria agressiva desde o início e, logo cedo, ficou bastante claro que o valor dos impávidos combatentes da Força Expedicionária Brasileira seria evocado para comover os jurados e demover a opinião pública. E, com efeito, comoveu deveras. Naquela oportunidade, o banco dos réus estava ocupado não por um assassino qualquer, mas por um bravo que ajudou a chutar o traseiro de Hitler para fora do trono da Europa. Respondendo à grave questão, trazida nas alegações finais pelo causídico, a maioria dos jurados repercutiram um altissonante ‘não’. Afinal, prisão ao lado de criminosos comuns não era a recompensa devida àquele bravo, veterano da gloriosa campanha da Itália.
Por 6 votos a 1 o veredicto soberano do grande júri se lhe restituiu a liberdade, mas não a vida. A vida jamais teve de volta. Por maioria, a vontade soberana do grande júri concedeu a absolvição, mas não o livrou da culpa. Com isso foi lançado de volta à sociedade, a caminho de um ostracismo escolhido, um solipsismo auto-imposto. A flagelação quase voluntária da lembrança contra a involuntariedade própria dos pesadelos que se intensificaram: sonhava com o front, com as bombas explodindo aos seus pés e as balas zunindo a centímetros do capacete. Sonhava com as marchas forçadas e com o corpo lívido da esposa banhado em sangue, mutilado por suas próprias mãos.
Viveu assim, se é que isso é viver, por muitos anos até que os alemães – malditos sejam –, finalmente o pegaram: nada menos que a elite dos odiosos chucrutes, uma divisão de assalto, furtiva silenciosa, poderosíssima. Muito pior do que mil panzers de Rommel, mais devastador que todos os stukas de Göring. A tropa disciplinada, bem treinada. Os melhores, comandados por ele em pessoa, o impiedoso, o cruel General Alzheimer.
No final, só o que restou foi o corpo murcho, abandonado pelo espírito e a mente vazia. O olhar cavo do pós-guerra deu lugar ao não-olhar, pupilas que nada fitam, apagadas a refletir apenas a morte anunciada. O esquecimento de si mesmo. Aos poucos deixou de falar, antes do fim já não reconhecia mais quem quer que fosse. Alzheimer, inclemente, devastador. O ocaso silencioso, o abandono absoluto, o esquecimento da própria condição humana. No mal derradeiro, porém, no aniquilamento, na atrocidade do olvido, finalmente, o velho soldado encontrou a cura.