Espaço,
tempo e os elementos drenaram a força e a vitalidade do agressor. Ao invadir a
Rússia, a Alemanha penetrou num clima diferente, e seus exércitos precisaram
lidar com mudanças de estação repentinas e violentas. A estratégia alemã da
guerra-relâmpago era inadequada para operações continuadas, e os rigores do
inverno de 1941 surpreenderam o profeta da Nova Ordem. Quando chegou o frio,
este matou mais soldados alemães do que as balas e baionetas russas. No
entanto, seria equívoco presumir que o xeque-mate sofrido por Hitler, superando
em muito as perdas de Napoleão de Moscou, deveu-se apenas a uma mudança do
clima. Foram os sacrifícios dos russos que conseguiram isso – o que não muda a
conclusão de que seis semanas de tempo clemente poderiam ter feito diferença
para o maior ataque militar de todos os tempos. Mas o general inverno, o eterno
aliado da Santa Mãe Rússia, não permitiu. (Erik Durschimied. Como a natureza
mudou a História. Rio de Janeiro. Ediouro: 2004, p. 226-227.)
A historiografia relata que o solo sagrado da Mãe
Rússia jamais foi expugnado pelo inimigo estrangeiro. Carlos XII da Suécia
marchou sobre a Rússia no bojo da Grande Guerra do Norte em 1707. O rei
sueco conquistou importantes vitórias, porém, seu exército encontrou a
aniquilação em Poltava, marcando, assim, o fim da trajetória da Suécia como uma
grande nação européia. Napoleão, por seu turno, chegou a tomar Moscou e passar
uma noite no próprio Kremilin, porém, a desastrosa retirada sob o látego
impiedoso do General Inverno solapou as bases do Primeiro Império Francês, uma
vez que a fina flor da soldadesca francesa pereceu sob toneladas de gelo. O
último a tentar foi Hittler. O último a fracassar também. Erik Durschmied, em
seu revelador Como a Natureza Mudou a História, cujo breve excerto
transcrevemos acima à guisa de epígrafe da presente exposição, relata como os
temidos Panzers congelaram e afundaram na lama, perecendo sob a pesada mão do General
Inverno, o mesmo que um século e meio antes havia subjugado o Vencedor de
Austerlitz.
Nada obstante, hoje em dia muito se fala da
decisiva Vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, do Dia D,
quando a maior armada que o mundo já vira tomou as desoladas areias de Omaha
Beach. Para os russos, porém, a Segunda Guerra não foi uma vitória do bem
contra o mal nazi-fascista. Antes, para os russos, não houve uma simples
vitória dos aliados sobre os alemães. Para esses renitentes cossacos, o que
houve foi uma vitória do povo russo. Todos na Rússia, do mais jovem e ignaro
estudante até o mais encanecido ancião, sabem que a Segunda Guerra é a grande
vitória russa.
As justas proporções de Motherland Calls |
Atualmente, a cada ano, o país pára entre os dias
08 e 09 de maio para celebrar a efeméride. A alegria dos rostos jovens se
mistura ao sorriso orgulhoso dos veteranos da Grande Guerra Patriótica.
Imediatamente após o fim do conflito os russos se uniram para celebrar a
grandiosa vitória e expressá-la também na arte. Assim, esse sentimento foi
materializado de uma maneira talvez sem precedentes na História, quiçá desde a
feitura do Arco do Triunfo em 1806, que celebra as façanhas de Napoleão na
Campanha da Itália.
Dentre os inúmeros monumentos erigidos, destacamos
a gigantesca estátua que personifica a Mãe Rússia. Naturalmente estamos falando
de Motherland Calls, construída em local estratégico, dotada de uma
imponência exuberante, capaz de chocar a imaginação das pessoas com suas
proporções colossais.
O local onde essa Vênus Titânica assombra e
recomenda parcimônia e reflexão ao inimigo é Mamayev Kurgan – Мамаев Курган em russo –, uma colina que se ergue dominante
sobre a cidade de Volgogrado, que nos tempos da Segunda Guerra ainda chamava-se
Stalingrado.
Motherland Calls faz parte de um grandioso memorial
construído em alusão à Batalha de Stalingrado, travada de agosto de 1942 a
fevereiro de 1943. No topo da colina, encontra-se a monumental estátua de 91m
de altura, erguida em honra daqueles que morreram naqueles dias sangrentos
defendendo o solo pátrio.
Mesmo para os padrões tipicamente monumentais da
era soviética Motherland Calls é uma visão impressionante. Elevando-se
dezessete andares acima da cidade russa de Volgogrado, a estátua monolítica que
descreve uma figura feminina ao vento, brandindo uma enorme espada, é uma
combinação impressionante de estilo neoclássico propaganda bolchevique.
Representação simbólica da vitória soviética sobre
os invasores nazistas, a figura intencionalmente lembra a Vitória de
Samotrácia. Como a obra prima helênica, a composição Soviética comunica dinamismo
e força. Do pedestal até o topo da cabeça, a Nice bolchevique mede 53 metros.
Seu ponto mais alto (a ponta da espada) está localizado cerca de 91 metros no
ar. Tão grande que foi, de fato, a maior estátua do mundo no momento de sua
inauguração em 15 de outubro de 1967.
Motherland Calls não é um monumento isolado. Pelo
contrário, é o ponto focal de um complexo e vasto memorial que cobre uma imensa
área em Mamaev Kurgan, o epicentro da Batalha de Stalingrado. Foi ali, pois,
que o destino da Europa foi determinado entre 1942 e 1943. Aquele morro foi
invadido pelos alemães em meados de setembro 1942, para ser recapturado pelo
Exército Vermelho depois alguns dias. Posteriormente, russos e alemães
disputaram cada centímetro da cidade arrasada e a vitória, essa musa ingrata,
mudou de mãos várias vezes antes do fim do cerco e da destruição final das
forças nazistas.
Detalhe do imenso memorial de Mamaev Kurgan |
Nas décadas que se seguiram depois de 1945, a
Batalha de Stalingrado emergiu como a peça central de um culto patrocinado pelo
Partido Comunista dedicado à vitória decisiva e à supremacia da URSS. Destinado
a honrar as dezenas de milhões de soldados e civis que perderam suas vidas na
Grande Guerra Patriótica, o culto da guerra serviu também como um suporte
político para os integrantes do Partido Comunista e para a manutenção do
regime. Durante os anos 1950 e 1960 dezenas de milhares de monumentos foram
encomendados para lembrar heróis soviéticos e suas vitórias. Todas essas
celebrações formaram o cenário ideal para incontáveis cerimônias que visaram
unir os cidadãos em torno de uma história oficial do sofrimento coletivo e do
sacrifício, retratando o heroísmo do partido e de seus membros abnegados,
todos essenciais para a vitória.
O General Inverno sempre presente |
Em 1967 o Partido Comunista celebrava o
quinquagésimo aniversário da Revolução Bolchevique. Contudo, com as memórias do
Grande Outubro desvanecendo-se no passado, os líderes soviéticos
concentraram-se no conflito mais recente objetivando gerar um apoio contínuo
para o regime. A importância política do passado para o presente foi claramente
mostrada durante a cerimônia de abertura do memorial. Em seu discurso, o
Secretário-Geral Leonid Brezhnev proclamou que o monumento gigantesco
representava o ressurgimento da URSS no pós-guerra. A estátua, observou ele,
era um símbolo "do amor do povo infinito pela Pátria e a sua
solidariedade, inabalável, com o Partido Comunista". A seu turno, a
imprensa não se furtou em comparar os operários que construíram o colosso com
os valentes soldados que haviam se empenhado em deter os invasores nazistas no
auge do conflito.
When the Motherland Calls... |
Como a versão oficial da Grande Guerra Patriótica,
a história oficial da construção do monumento foi em grande parte um mito. Sua
conclusão foi marcada menos pelos êxitos típicos de uma verdadeira campanha
militar do que por uma sequência de erros e desencontros. Aprovado em 1958, o
memorial foi originalmente destinado a abrir em 1962, quando marcaria o
vigésimo aniversário da batalha que celebra. No entanto, devido à incompetência
burocrática, à escassez de materiais, e às restrições técnicas a conclusão do
projeto foi repetidamente adiada. O custo também atormentou os projetistas e
executores. Inicialmente orçado em 39,5 milhões de rublos, os valores
definitivos se aproximaram do dobro desse montante. A própria decisão de
conceber a estátua em concreto armado foi em si uma concessão dispendiosa para
o projeto que, naturalmente, fez crescer vertiginosamente os custos. Isso
porque, o projeto original previu a construção de uma estátua de mármore com a
metade das dimensões. No outono de 1961, com o trabalho previsto para começar
imediatamente, o então Primeiro-Secretário do Partido, Nikita Khrushchev,
decretou que a altura da estátua deveria ser elevada, pois ele a queria o mais
alto monumento da URSS, suficiente a bater em altura a Estátua da Liberdade
americana. Durante a guerra fria, de parte a parte, tudo era propaganda e,
portanto, desde então os americanos, quando se referiam à altura de sua Estátua
da Liberdade, passaram a considerar em suas medidas o pedestal em que esta fica
depositada.
Em todo caso, apesar das circunstâncias caóticas
por trás de sua construção, os resultados finais do colosso são
impressionantes. O complexo e às memórias dos heróis da Grande Guerra
Patriótica são tão caros aos russos que, em 2008, uma pesquisa nacional
proclamou Motherland Calls uma das Sete Maravilhas da Rússia.
Embora a URSS tenha se desintegrado em 1991, tanto
o culto da guerra quanto aos seus monumentos permanecem intactos. Hoje, no
entanto, comemorações oficiais da Grande Guerra Patriótica tentam minimizar as
conexões com o passado soviético. Os dias gloriosos são naturalmente evocados,
mas sem qualquer menção à extinta União Soviética. O uso do termo
"Pátria" no lugar de referências à URSS destaca-se nos esforços
crescentes de autoridades russas para reivindicar a guerra como um triunfo da
Rússia. Essa retórica não é um fenômeno isolado. Antes, é parte de uma campanha
mais ampla para gerar apoio patriótico para o governo por meio de apelos a
Segunda Guerra Mundial.