Encontraram um espaço na grama, relativamente livre de
casais deitados um em cima do outro, sentaram-se e observaram os patos
espetaculares e a luz do sol ondulando na superfície do lago que corria sob os
patos espetaculares.
– Uma história – disse Fenchurch, aconchegando o braço
dele no dela.
– Que vai te dar uma idéia do tipo de coisa que
acontece comigo. É completamente real.
– Você sabe que algumas vezes as pessoas contam
histórias que supostamente aconteceram com o melhor amigo do primo da sua
mulher, mas que, no fim das contas, foram inventadas mesmo.
– Bom, parece mesmo uma dessas histórias, só que
realmente aconteceu e eu sei que aconteceu, porque a pessoa com a qual tudo
aconteceu fui eu.
– Como o bilhete da rifa.
Arthur riu.
– Exatamente. Eu ia pegar um trem – prosseguiu ele. –
Cheguei na estação...
– Eu já te contei – interrompeu Fenchurch – o que
aconteceu com os meus pais numa estação?
– Já – disse Arthur.
– Só estou conferindo.
Arthur deu uma olhada no relógio.
– Acho que já podíamos voltar – disse ele.
– Conte a sua história – respondeu ela, decidida. –
Você chegou na estação.
– Eu estava uns vinte minutos adiantado. Confundi o
horário do trem. Acho que é no mínimo igualmente possível – acrescentou, após
uma breve reflexão – que a companhia de trens tenha confundido o horário. Nunca
tinha pensado nisso.
– Tá, continua. – Fenchurch riu.
– Aí eu comprei um jornal, para fazer as palavras
cruzadas, e fui até o restaurante para tomar um café.
– Você faz palavras cruzadas?
– Faço.
– Quais?
– As do The
Guardian, normalmente.
– Eu acho que eles sempre tentam ser espertinhos.
Prefiro a do Times. Você resolveu?
– O quê?
– As palavras cruzadas do Guardian.
– Ainda não tive chance de dar uma olhada nelas –
disse Arthur. – Ainda estou tentando comprar um café.
– Tudo bem, então. Compre o café.
– Estou comprando. Estou comprando também alguns biscoitos.
– Que tipo?
– Rich Tea.
– Boa escolha.
– Também gosto. Com tudo isso em mãos, eu procuro uma
mesa e me sento. E, antes que você me pergunte como era a mesa, não sei, não
lembro, isso aconteceu há séculos. Provavelmente era redonda.
– Tá bem.
– Deixa eu recapitular a cena. Eu lá, sentado à mesa.
A minha esquerda, o jornal. À direita, o café. E no meio da mesa o pacote de biscoitos.
– Estou vendo perfeitamente.
– O que você não vê – disse Arthur -, porque ainda não
o mencionei, é um cara que já estava sentado nessa mesa. Ele está sentado na
minha frente.
– Como ele é?
– Perfeitamente normal. Maleta de couro. Terno e
gravata. Não tinha cara de quem estava prestes a fazer uma coisa estranha.
– Ah. Conheço bem esse tipo. O que ele fez?
– Ele fez o seguinte. Ele se inclinou sobre a mesa,
pegou o pacote de biscoito, abriu, pegou um e...
– E?
– Comeu.
– O quê?
– Ele comeu.
Fenchurch olhou para ele, abismada.
– E que diabos você fez?
– Bem, diante das circunstâncias, fiz o que qualquer
inglês viril faria. Fui obrigado a ignorá-lo.
– Como assim? Por quê?
– Bom, não é o tipo de coisa para a qual a gente está
preparado, né? Vasculhei minha alma e descobri que não havia nada na minha
criação, experiência ou até nos meus instintos básicos me dizendo como reagir
diante de alguém que, sentado na minha frente, simplesmente, calmamente, rouba
um dos meus biscoitos.
– Ah, você podia... – Fenchurch pensou a respeito. –
É, tenho que admitir que eu teria feito a mesma coisa. E aí, o que aconteceu?
– Concentrei furiosamente a minha atenção nas palavras
cruzadas – disse Arthur. – Não consegui preencher nada, tomei um gole de café,
estava quente demais para beber, então eu não tinha nada para fazer. Me
preparei. Apanhei um biscoito, tentando fingir que não
tinha reparado que o pacote já estava misteriosamente aberto...
– Mas você reagiu, adotou uma postura firme.
– Do meu jeito, sim. Comi o biscoito.
Comi deliberada e ostensivamente, para que ele não tivesse dúvida sobre o que
estava fazendo. E, quando eu como um biscoito – disse
Arthur -, devo dizer que não tem volta.
– E o que ele fez?
– Apanhou outro. Sério – insistiu Arthur -, foi
exatamente o que ele fez. Ele apanhou outro biscoito e
comeu. Tão claro como a luz do dia. Tão certo como estarmos sentados aqui no
chão.
Fenchurch mexeu-se desconfortavelmente.
– E o problema – disse Arthur – é que, como eu não
havia dito nada da primeira vez, ficou ainda mais difícil levantar o assunto da
segunda vez. O que eu poderia dizer? "Com licença... não pude deixar de
notar que..." Não dava mais. Não, eu o ignorei, até mesmo com mais vigor
do que antes
– Esse é o meu homem...
– Olhei para as palavras cruzadas, novamente, não
consegui fazer uma linha, aí, inspirando-me na coragem de Henrique V no Dia de
São Crispim...
– Ahn?
– Eu ataquei novamente. Peguei outro biscoito.
E, por um momento, os nossos olhos se encontraram.
– Assim?
– Sim, bem, não, não desse jeito. Mas se encontraram.
Por um breve instante. E nós dois desviamos o olhar. Mas devo dizer – disse
Arthur – que houve uma pequena eletricidade no ar. Havia uma pequena tensão
crescendo naquela mesa. Àquela altura.
– Imagino.
– Acabamos com o pacote assim. Ele, eu, ele, eu.
– O pacote todo?
– Bom, eram só oito biscoitos,
mas parecia que toda uma vida de biscoitos havia se
passado diante de nós. Nem mesmo os gladiadores enfrentavam algo tão difícil.
– Os gladiadores – disse Fenchurch – teriam que fazer
tudo isso sob um sol forte. Exige mais do condicionamento físico.
– É, tem isso. Enfim. Quando o pacote vazio jazia
morto entre nós, o cara finalmente se levantou, já tendo feito o pior e foi
embora. Eu suspirei aliviado, é claro. Anunciaram o meu trem um pouco depois,
então terminei o meu café, levantei, apanhei o jornal e, embaixo do jornal...
– Ahn?
– Estavam os meus biscoitos.
– O quê? – perguntou Fenchurch. – O quê?
– É sério.
Ela ficou sem ar e se jogou de costas na grama,
morrendo de rir.
Sentou-se novamente.
– Seu bobalhão – disse ela, levantando a voz -, seu
bobo, tolo e completo idiota!
Empurrou Arthur para trás, rolou sobre ele, lhe deu um
beijo e rolou de volta ao seu lugar.
Ele ficou impressionado ao sentir como ela era leve.
– Agora é a sua vez de me contar uma história.
ADAMS.
Douglas. Até mais, e obrigado pelos
peixes! Tradução de Márcia Heloísa Amarante Gonçalves. São Paulo: Arqueiro,
2010, p. 76-80. Título Original: So Long, And Thanks for All the Fish.