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domingo, 16 de janeiro de 2011

O Adeus de Fontainebleau

Que Ce Dernier Baiser Passe Dans Vos Coeurs!


No dia 20 de abril de 1814, em um dos momentos mais dramáticos e arrebatadores de sua epopéia, o Imperador Napoleão I, acompanhado de alguns poucos oficiais, desceu as escadarias em forma de ferradura do Palácio de Fontainebleau, que dão acesso ao Pátio do Cavalo Branco, para se despedir de sua Velha Guarda. Oficialmente, naquele momento, ele já deixara de ser o imperador dos franceses. Ele, pois, havia abdicado. Terminara o seu sonho de uma Europa Unificada sob o domínio francês.

Dois anos antes, aqueles bravos homens haviam marchado sob o seu comando através das estepes russas até Moscou. Durante toda a campanha eles não conheceram derrota em uma batalha sequer. O Czar, porém, abandonou a cidade e os poucos habitantes que restaram preferiram entregar sua capital às chamas a entregá-la aos franceses. E, assim, na noite em que Napoleão dormiu no Kremlin, Moscou ardeu. A retirada foi desastrosa. O “General Inverno” mostrou mais uma vez porque o solo da sagrada Mãe Rússia jamais foi conquistado pelo inimigo estrangeiro. O frio extremo, para o qual não estavam preparados, a fome que grassava entre as tropas e as investidas dos terríveis cavaleiros Cossacos ceifaram a vida de aproximadamente 570 mil homens (NICOLSON, 1987, p. 242). Com isso, La Grande Armeé, o Grande Exército de Napoleão foi desbaratado. Estima-se que a fina-flor da juventude francesa pereceu sob camadas de neve e trespassada pelas lanças dos Cossacos.


A fatalidade, contudo, não deteve o ímpeto do Imperador. A França cedeu mais uma vez seus filhos e um novo Grande Exército foi paramentado com as cores vibrantes da bandeira tricolor e marchou novamente sob o estandarte invencível da Águia Imperial. Nas primeiras páginas do clássico romance “A mulher de trinta anos”, o grande inventor da humanidade Honoré de Balzac (1973, p. 17-18) descreve o desfile do Imperador e sua guarda que partiam rumo a uma nova campanha:

Esse domingo era o décimo terceiro do ano de 1813. No dia seguinte, Napoleão partia para essa fatal campanha durante a qual ia perder Bessières e Duroc, ganhar as memoráveis batalhas de Lutzen e Bautzen, ver-se traído pela Áustria, pela Saxônia, pela Baviera, por Bernadotte, e disputar a terrível Batalha de Leipzig. A magnífica parada comandada pelo imperador devia ser a última daquelas que por tanto tempo exaltaram a admiração dos parisienses e dos estrangeiros. A velha guarda ia executar, pela última vez, as sábias manobras cuja pompa e precisão espantaram algumas vezes até o próprio gigante, que se preparava então para o seu duelo com a Europa. Um triste sentimento levava às Tulherias uma brilhante e curiosa população. Todos pareciam adivinhar o futuro, e pressentiam talvez que, mais de uma vez, a imaginação teria que retraçar o quadro daquela cena, quando dos tempos heróicos da França adquirissem, como hoje, cores quase fabulosas.

As dificuldades, naturalmente, iam além da inexperiência dos neófitos combatentes. O insucesso da Campanha de 1812 inflou o moral das nações inimigas e uma nova coalizão se levantou contra Napoleão. As cinco coalizões anteriores haviam fracassado diante do Imperador, mas a Campanha de Leipzig foi marcada por vitórias pírricas: Champaubert, Montmirail, Château-Thiery, Vauchamp, Montereau, Craonne e Reims, foram combates vitoriosos e inúteis. Sem conseguir obter uma vitória que garantisse estabilidade em longo prazo, Napoleão recua.

Granadeiros da Velha Guarda
Segundo Paul Johnson (2002, p. 164) O Imperador houvera elevado o nacionalismo francês “a gigantescas alturas”, porém despertara outras forças nacionalistas que se aliaram contra ele e contra a França e os avassalaram. A França, portanto, caiu. O inimigo ocupa Paris. Os marechais de Napoleão exercem pressão no sentido de que ele abdique. Quando ele, por fim, decide renunciar em favor do filho, O Rei de Roma, o Senado Francês já o havia deposto e optado pela volta de um Bourbon ao trono. Um Senado ainda composto por alguns dos regicidas que votaram pela morte de Luis XVI em 1792. A restauração dos Bourbon, que um ano antes parecia improvável, havia se tornado uma saída inevitável, ante a falta de outras perspectivas viáveis. Entrementes, uma turba de monarquistas derrubava a estátua de l’Empereur do Alto da Coluna Vendôme. Diante desse quadro desolador, conforme afirma Steven Englund (2005, p. 455), a Caulaincourt, o Imperador pareceu estóico: “Nos seus dias de sofrimento e o vi tal como nos dias de glória e prosperidade”.

Contudo, Alexandre Dumas (2004, p. 130), célebre autor de “O Conde de Monte Cristo,” e filho de um general de Napoleão, diz que quando os aliados declararam que o Imperador, pessoalmente, era o único obstáculo à paz geral, se lhe restaram apenas dois caminhos: “sair da vida à maneira de Aníbal ou descer do trono à maneira de Sila.” Há rumores de que o primeiro caminho foi tentado, sem sucesso, de maneira que Napoleão decidiu recorrer ao segundo, nesses termos:

Tendo as potencias aliadas proclamado que o imperador Napoleão era o único obstáculo ao restabelecimento da paz na Europa, o imperador Napoleão, fiel a seu juramento, declara que renuncia por ele e seus herdeiros ao trono da França e da Itália, pois não há sacrifício pessoal, incluindo o da vida, que não esteja disposto a fazer pela França.

E, assim, naquele 20 de abril em Fontainebleau, o grande corso precisou dizer adeus à sua amada Guarda. Representantes das nações aliadas foram testemunhas nervosas, todos eles estavam visivelmente emocionados. Dentre eles havia um russo, o Conde Chuvalov; um austríaco, o general Koller; um inglês, o coronel Campbell; e conde prussiano Walburg-Truchess.

Os homens aos quais Napoleão dirigiu o seu adeus representavam a unidade de elite do Grande Exército. Os Imortais, como eram conhecidos os combatentes da Guarda Imperial, compunham o destacamento mais respeitado, mais temido da Europa. Por duas décadas, de uma invencibilidade quase mítica, a simples visão de suas altas barrentinas cobertas de pêlo de urso espalhavam o terror entre os inimigos do Império. Os velhos Peles de Urso ajudaram seu Imperador a expandir os limites da glória, vencendo, sempre vencendo: seja sob o olhar dos “40 séculos” aos pés da grande Pirâmide de Guizé; seja cruzando os Alpes nas pegadas de Aníbal e subjugando o inimigo na terra dos antigos Césares; ou conduzindo a vitoriosa Águia nos campos de Marengo, Friedland, Wagram e Austerlitz.

A Águia, símbolo máximo do Grande Exército
Oficialmente, a Guarda Imperial foi instituída em 1804, ano da coroação de Napoleão, mas antes disso foi a Guarda Consular que data de 1799, que por seu turno havia surgido da união da Garde du Directoire exécutif e dos Grenadiers près de la Représentation nationale. Os Peles de Urso eram a divisão de elite mimada por seu imperador, veteranos de muitas campanhas: Les Immortels.

Os Imortais estiveram sempre prontos a ouvir as exortações de seu Imperador e em 20 de abril de 1814 não foi diferente. A Guarda era toda ouvidos, impecavelmente formada no Pátio do Cavalo Branco.

O professor Euclides Mendonça (2008, p. 101) lembra que foi exatamente nas proclamações que o Imperador se destacou e atingiu o auge de sua expressão literária. Para Mendonça, as proclamações de Napoleão constituem um modelo de eloquência militar, campo em que o Vencedor de Austerlitz não encontra adversários na História. Lanfrey (apud MENDONÇA, 2008, p. 101), para quem Napoleão foi muito inferior a César “no tocante ao bom senso”, reconhece que os discursos de l’Empereur possuiam, em grau muito superior aos do romano, “o dom de arrebatar e impactar as imaginações”.

A proclamação nada mais é senão uma pequena peça de oratória, que apresenta uma estrutura clássica: “um breve exórdio, um núcleo de ideias e uma rápida peroração” (MENDONÇA, 2008, p. 103). Napoleão, um mestre nessa arte, não perdia tempo com perífrases e intróitos. Antes, ele abordava com vigor o assunto, dispensando as transições e se apropriando das idéias, as quais bebeu nos clássicos e que se lhe surgiam em turbilhão. Sua linguagem não escondia suas emoções, mas, isto sim, as deflagrava como uma salva de metralha, que atingia em cheio os seus interlocutores.

Desse modo, as palavras que ele diria aos Imortais, naquele dia, com justiça, passariam à História. A proclamação ficou conhecida como o “Adieux à la Garde”. Momentos antes, Napoleão havia escrito uma carta à Maria Luiza dando conta que estava de partida, que dormiria aquela noite em Briare e no dia seguinte partiria novamente rumo a Saint-Tropez. Na carta, ele se despede, assegurando à Imperatriz que ela poderá sempre contar com a sua dedicação, constância e coragem e enviando um beijo ao Rei de Roma. Ele não desconfiava que jamais veria sua imperatriz e seu “reizinho” novamente.

É chegado o momento: Napoleão se virou para cumprimentar os oficiais que o acompanhavam e desceu as escadas com passo firme. Lá estavam os granadeiros da Velha Guarda formados. As baionetas brilharam à luz do dia quando o Imperador chegou para se colacar mais uma vez entre seus homens. Eis as suas palavras:

Soldados da minha Velha Guarda,

Venho apresentar-vos minhas despedidas.

Durante vinte anos a fio, muitas e muitas vezes, deparei-me convosco, palmilhando o caminho da honra e da glória.

Nos dias que correm, como também, nos dias de nossos sucessos, nunca deixastes de ser modelos de bravura e de lealdade. Com homens de vossa estirpe, nossa causa não estaria perdida. Mas a guerra parecia interminável.

Corríamos o risco iminente de um conflito civil. Isso ocorrendo, a França tornar-se-ia ainda mais infeliz.

Eis por que sacrifiquei todos os meus interesses em prol dos interesses da pátria e me afasto. Quanto a vós, meus amigos, continuai servindo à França. Para ela estiveram voltados todos os meus pensamentos. Para ela convergirão sempre meus melhores anelos. Não deploreis meu infortúnio. Se aceito sobreviver-me é, ainda, para servir vossa glória. Pretendo escrever sobre os grandes feitos que empreendemos juntos.

A emoção o sufocou, obrigando-o a uma curta pausa. Max Gallo (2003, p. 570) lembra que nesse instante ouviu-se apenas os soluços dos bravos granadeiros. Então o Imperador continuou:

Adeus, filhos meus. Gostaria de estreitar-vos a todos junto ao meu coração. Que eu beije, pelo menos, a vossa bandeira!

Nesse momento, o General Petit se adiantou trazendo consigo a bandeira com a Águia reluzente no topo da haste. O Imperador, não sem grande emoção, beijou a bandeira e abraçou Petit. Encerrando, ele diz:

Adeus, mais uma vez, meus velhos camaradas! Que este último ósculo perpasse vossos corações!

Ao final, Napoleão abraçou os fiéis oficiais que lhe cercavam e subiu no carro que se pôs imediatamente a caminho. Alexandre Dumas (2004, p. 130) escreveu que, durante um ano, o mundo pareceu vazio.

Certo é que o 20 de abril de 1814 foi um dos dias mais emocionantes da saga napoleônica. A cena da despedida foi retratada na famosa pintura romântica de Antoine Alphonse Montfort, chamada “Adieux de Napoléon à la Garde impériale dans la cour du Cheval-Blanc du château de Fontainebleau”. O astro Rod Steiger, no filme Waterloo, de 1970, interpretou a cena em uma adaptação cinematográfica que, apesar da alteração do texto original, ainda emociona.

Em 4 de maio de 1814, Napoleão aportava em Elba. A história daquele lugar jamais seria a mesma novamente. A Velha Guarda teve que esperar com paciência, em um “interminável apresentar-armas, enquanto retiniam ainda as últimas palavras do imperador deposto” (BONHEUR, 1982, p. 133), mas, doze meses depois, Os Imortais marchariam novamente sob às ordens de seu Imperador.

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REFERÊNCIAS:

BALZAC, Honoré de. A mulher de trinta anos. Tradução de Casimiro Fernandes e Wilson Lousada. São Paulo: Círculo do Livro, 1973. Título original: Le femme de trente ans.

BONAPARTE, Napoleão. Memórias de Santa Helena. Tradução de Olga de Garcia. Introdução e notas de Roger Peyre. Edições Meridiano: Porto Alegre, 1941.

BLOND, Georges. Napoleão: os cem dias. Tradução de Sieni Maria Campos. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial, 1998. Título original: Napoléon: Lês cent juors.

BONHEUR, Gastón. Napoleão: O Retrato do Homem. Tradução do Cel. Job Lorena de Sant’Anna. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1982.

DUMAS, Alexandre. Napoleão: uma biografia literária. Tradução, apresentação e notas de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. Título original: Napoléon.

DURSCHMIED, Erik. Como a natureza mudou a História. Tradução de Mário Vilela. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. Título original: The weater factor.

ENGLUND, Steven. Napoleão: uma biografia política. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. Título original: Napoléon: A Political life.

FURTADO, Peter (Org.): 1001 dias que abalaram o mundo. Tradução de Fabiano Morais, Fernanda Abreu e Pedro Jorgensen Júnior. Rio de Janeiro: Sextante, 2009. Título original: 1001 Days that Shaped the World.

GALLO, Max. Napoleão. Tradução de Léa de Abreu Novaes e Sieni Maria Campos. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial, 2003. v. 2. Título original: Napoléon: l’emperuer des rois, le immortel de Sainte-Hélène.

JOHNSON, Paul. Napoleão. Tradução de S. Duarte. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. Título original: Napoleon.

LENTZ. Thierry. Napoleão. Tradução de Constancia Egrejas. São Paulo: UNESP, 2008. Título original: Napoléon.

MENDONÇA, Euclides. A Força do Estilo de Napoleão. 2. ed. Brasília: Tesaurus, 2008.

NICOLSON, Nigel. Napoleão 1812. Tradução de Henquique Araújo Mesquita. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. Título original Napoleon 1812.

STENDHAL. Napoleão. Tradução de Eduardo Brandão e Kátia Rossini. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. Título original: Memóires sur Napoléon.

WOLOCH, Isser. Napoleão e seus colaboradores: a construção de uma ditadura. Tradução de Carlos Araújo. Rio de Janeiro: Record, 2008. Título original: Napoleon and his collaborators.