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sexta-feira, 30 de março de 2012

O Leitor, de Bernhard Schlink


O majestosamente belo e o tetricamente trágico

O belo e o trágico andam lado a lado no livro do professor Bernhard Schlink, muito embora, é evidente, não se trate da beleza majestosa referida no título deste comentário. Antes, o livro contém uma beleza pálida, uma espécie de altivez insípida, como se tudo o que pudesse ser reconhecido como belo nesta estória estivesse a tal ponto subjugado pelas forças incoercíveis da tragédia humana que só pode ser lembrado envolto pelo manto desbotado que sói cobrir as piores lembranças da Segunda Guerra Mundial.

Nada obstante, essa beleza esmaecida bem existe. Há a beleza opaca da força que impele a sociedade rumo ao progresso, na tentativa de se reerguer dos escombros da guerra que, pela segunda vez em menos de 30 anos, devastou a Europa. Nesse cenário, Michael Berg, o jovem protagonista de 15 nos, vive com os pais em um (imagino) subúrbio da capital alemã e se prepara para voltar à escola depois de ter ficado afastado das aulas para se tratar de uma hepatite que contraiu.

O romance e o filme
 Voltando a tratar do belo, não se pode esquecer da triste beleza das descrições que Berg faz de Hanna Schmitz, sempre comoventes e apaixonadas. Berg entra por acaso na vida de Hanna, que é cerca de 21 anos mais velha do que ele. Os laços entre eles vão se estreitar até o ponto em que surge um improvável romance.

O autor utilizou-se do recurso de fazer com que Berg falasse através de uma máscara, ou seja, um Michael Berg mais maduro relembra e relata os episódios de sua juventude, de modo que é possível sentir claramente que às vezes a história é contada não como o jovem que viveu a sentiu, mas como o homem mais velho se lembra dela.

Kate Winslet vive Hanna Schmitz no cinema
 Esse recurso, ao mesmo tempo em que propicia uma imagem panorâmica dos acontecimentos passados, permite a inserção de alguns questionamentos profundos e de algumas constatações inquietantes, arriscaria a dizer filosóficas, considerando a formação do autor. Não raro um parágrafo ou um capítulo terminam com uma interrogação, como a demonstrar que, por mais que se passe toda uma vida a meditar sobre determinada situação, as respostas não ocorrem como em uma questão de múltipla escolha. Antes, é preciso se entregar à arte da decifração, que é caminho pleno de angústia.


Em suas relações, o casal observa um ritual simples, mas que lhes é sagrado: banho, sexo e leitura. Michael Berg lia os clássicos em voz alta para Hanna. Por meu turno, em alguns momentos, tive ímpetos de ler o livro em voz alta – para mim mesmo, é evidente – e, assim, entender e praticar as diferenças sutis entre a leitura silenciosa e a leitura em voz a alta que são explicadas pelo narrador. No decorrer da narrativa, muitas obras são citadas, muitas grandes leituras e releituras sugeridas (Umberto Eco tem cada vez mais razão quando diz que os livros só tratam de outros livros).

Hanna Schmitz (Kate Winslet), culpada ou inocente?

Uma das leituras mais marcantes para as personagens e para mim foi a de Guerra e Paz. Não só por tudo que representa intelectualmente esse clássico de Tolstoi, mas também pela vastidão da obra, do seu alcance, que vai da descrição fiel e vibrante dos bailes de gala da sociedade russa do século XIX, ao relato do horror dos campos de batalha de Austerlitz e Borodino, verdadeiras hecatombes numa das mais sangrentas eras da História da humanidade. Como se sabe, Tolstoi trata, ainda, de heroísmo, de resistência, de luta, sofrimento e redenção. Em Guerra e Paz há descrições vibrantes de pessoas de paisagens e, sobretudo, do espírito do povo russo. De alguma forma (e me elevei um bocado a este pensamento), suponho que ouvir a narrativa de Guerra e Paz, a depender da entonação do narrador, seguramente, deve ser capaz de despertar algumas sensações que a humílima (mas absorta) leitura silenciosa que fiz não pôde.

Inclusive, tenho que o autor muito foi corajoso ao decidir que Berg leria Guerra e Paz para Hanna, notadamente por criar certo ar de incredulidade no leitor que questiona: quanto tempo seria preciso para recitar as mais de mil páginas do romance e compreendê-las?

O gosto de Hanna pela literatura é uma das imagens marcantes que ficarão desde livro, especialmente quando, anos mais tarde, novas revelações são feitas sobre a sua personalidade, que tornam essa predileção ainda mais digna de nota, conquanto a transmudam de heroína em grande vilã do romance.

"War and Peace, kid...War and Peace"
Antes que isso aconteça, todavia, Hanna inadvertidamente vai embora. Berg segue a sua vida, mas as marcas que Hanna imprimiu ainda calam fundo em sua alma. É certo que o sentimento esteve latente e que jamais chegou a despertar por inteiro, mas nessa nova fase, Hanna se torna uma obsessão. Uma trágica obsessão.

Com efeito, se não se pode dizer que a beleza encontrada na obra reveste-se da majestosa áurea sugerida pelo título, por outro lado, a tragédia nela contida é absurdamente tétrica, descomunal. O trágico que permeia até mesmo as partes mais leves da narrativa se revela em toda a sua extensão quando, anos mais tarde, o então estudante de Direito Michael Berg reencontra Hanna Schmitz. O professor leva a turma para acompanhar um julgamento de criminosos do regime nazista e Berg se depara com Hanna no banco dos réus.

É bom que se diga que o relato feito no presente comentário não revela nada que não seja, digamos, notório sobre o livro, visto que as informações de capa e orelha de todas as edições brasileiras contêm o cerne de tudo que foi dito até aqui e certamente não cometerei a indelicadeza de ir além daquilo que a própria editora tornou público.

A partir do encontro no Tribunal o romance se confirma como um clamoroso drama. Alguns dos maiores conflitos vividos pelas pessoas no pós-guerra são apresentados no romance, como por exemplo, o conflito da geração mais nova que questionou incessantemente seus pais pela colaboração ou mesmo pela simples omissão diante das práticas hediondas do Terceiro Reich.

Hanna Schmitz (Kate Winslet) levada à barra do tribunal
 É sabido que enquanto duraram as hostilidades, pouco se falou sobre os campos de concentração e sobre o extermínio em massa de milhões de judeus pelo Terceiro Reich, porém com o fim da guerra e a instauração da corte militar internacional em Nuremberg, as atrocidades praticadas durante a guerra foram trazidas ao debate e fomentaram o desejo de vingança daqueles que inicialmente pensaram em aplicar apenas a justiça. Esses certamente são alguns dos ingredientes do julgamento de Hanna Schmitz.

Kate levou o Oscar por sua Hanna Schmitz
Acertou em cheio quem fez a comparação inevitável com a cobertura do julgamento de Adolf Eichman feita por Hanna Arendt que se tornou o livro “Eichmann em Jerusalém”, no qual a filósofa judia lança o conceito de “banalidade do mal”. Assim como Eichman, Hanna Schmitz não era um monstro que os seus algozes sedentos por vingança pintavam. Obviamente, Hanna Schmitz era tão  culpada quanto Eichman, de maneira que o conceito Arendt não afasta a reprobabilidade de suas condutas hediondas. Antes, a filósofa faz notar que algumas pessoas agem dentro das regras do sistema a que estão inseridos sem racionalizar sobre seus atos. Esses indivíduos “banalizam” o mal, na medida em que não se preocupam com as conseqüências destes atos, mas tão-só com o cumprimento das ordens superiores.

Hanna e Michael Berg (Kate Winslet e David Kross)

Muitas das mais inquietantes questões suscitada por Bernhard Schlink em “O Leitor” dizem respeito aos sentimentos de Michael Berg e a sua dificuldade em lidar com o passado negro de Hanna Schmitz. Paira, portanto, sobre toda a obra os ares da profunda depressão em que mergulhou a humanidade ao cabo das duas grandes guerras do século XX, quando, afinal, o homem se deu conta de que, malgrado desconhecesse tudo que existia em seu pequeno planeta Terra, já detinha poder suficiente para destruí-lo completamente. Berço no qual nasceu a chamada contracultura, mas isso, naturalmente, é assunto para comentários de outras leituras.

O Leitor, a ouvinte suas leituras e seus livros
 Ao final, fechada a derradeira página, não sem grande contentamento, adicionei quatro ou cinco dos títulos daqueles lidos por Berg para Hanna em minha lista de leituras futuras e, ainda que fosse apenas por isso, a leitura já teria valido a pena, bem como assisti, com vivo interesse, ao filme, a versão holywoodiana que rendeu o Oscar de Melhor atriz a Kate Winslet.