A primeira edição de “Napoleão: Máximas e Pensamentos” não apontava Honoré de Balzac como autor do prefácio e organizador, pois o célebre autor de “Le Lys dans la vallée”, precisando saldar alguns compromissos com seus credores, vendeu o livro a um certo J. L. Gaudy Jeune pela importância de 4 mil francos.
É, de fato, bastante curioso pensar em um dos maiores escritores de todos os tempos como uma espécie de ghost writer do século XIX. O equivalente moderno do “melhoro sua monografia” ou algo do gênero. A história, porém, aconteceu realmente. Balzac trabalhou árdua e incessantemente durante toda a vida para dar à luz sua vastíssima obra, era, para utilizar um termo em voga, um workaholic inveterado, movido a grandes doses de café forte, mas sempre passou por dificuldades financeiras. Quando ele nasceu, em 1799, Napoleão acabava de regressar do Egito para, após o 18 de Brumário, se tornar Cônsul da República Francesa ao lado de Ducos e Sieyès. O autor de “Ilusões Perdidas”, portanto, cresceu sob a influência do Fazedor de Reis. Como se sabe, nem mesmo a derrota sofrida em 1815 e o consequente exílio em Santa Helena, onde o Imperador morreu em 1821, tiveram o condão de enfraquecer o mito napoleônico. Muito pelo contrário, pois foi justamente durante a Restauração que a já legendária figura do Artilheiro de Toulon ascendeu ao quase sagrado.
A edição brasileira |
[...] Há cerca de sete anos, sempre que lia um livro em que se tratava de Napoleão, ou sempre que encontrava um pensamento intenso, novo, enunciado por ele, anotava-o imediatamente em um ‘caderno de cozinha’ que estava constantemente sobre a minha mesa de trabalho.
Na mesma missiva, ele conta que precisou vender “o mais belo livro da época” ao comerciante de gorros, mencionado acima, que esperava dedicá-lo ao Rei Luis Felipe e receber a medalha da Legião de Honra, a distinção que l’Empereur concedeu à sua Guarda em 1802 [1]. Em que pese o tom leve e irônico dessa carta, estimo ter sido duríssima, para Balzac, a separação de sua acalentada obra. Afinal, nenhum outro senão o próprio Balzac mantinha um busto de Le Petit Caporal sobre a sua mesa de trabalho, junto ao qual fixou a mensagem: “o que ele começou com a espada eu concluirei com a pena.” Além disso, como escreveu à sua futura esposa, o autor tinha plena consciência de que se tratava de “uma das coisas mais lindas desses tempos: o pensamento, a alma daquele grande homem, recolhidos após inumeráveis investigações”. Antes do fim ele diz: “Que a sombra de Napoleão me perdoe”.
Não obstante, Napoleão não teria do que se queixar em relação a Balzac pelo conjunto de sua obra. Nos 95 livros que compõe a “Comédia Humana, um total de 546 páginas são dedicadas ao Vencedor de Friedland e de Marengo. Voltaire Schiling [2], em seu excelente artigo “Balzac e o Imperador” descreve detalhadamente as aparições de Napoleão na obra balzaquiana:
[...] O acampamento do imperador nas vésperas da batalha de Iena (1806) foi descrito por ele no Une ténébreuse affaire (Um caso tenebroso); a batalha de Eylau, travada em 1807, é narrada no conto sobre o pobre coronel Chabert (Le colonel Chabert), ocasião em que o personagem da novela é gravemente ferido na cabeça, enquanto que a terrível e heróica passagem sobre o rio Beresina, quando o imperador retirava-se da Rússia em outubro de 1812, apareceu no Adieu (Adeus).
O momento narrativo mais grandioso da presença de Napoleão na obra de Balzac dá-se no capítulo inicial da La Femme de Trente Ans, (A mulher de trinta anos) ocasião em que o imperador, em Paris, passa em revista o Grande Armée, perfilado e alinhado, antes de ser lançado nas batalhas finais travadas na Campanha da Alemanha de 1813. O vivo relato que o escritor faz das tropas enfileiradas no Campo de Marte, as fanfarras e o rufar dos tambores de guerra que anunciam ao povo e aos regimentos embandeirados à chegada eminente do grande homem, o silêncio respeitoso e a respiração em suspenso com que ele é recebido pela multidão, tudo isso, além de ser uma estupenda viagem no tempo, eletriza o leitor. Chega-se quase a ouvir-se o galope do belo cavalo branco do imperador, vestido com o seu capote cinza sem ornamentos e com o chapéu bicórneo à cabeça, passando à frente das águias da Guarda Imperial e dos símbolos gloriosos das divisões militares que se curvam frente a ele.
Tampouco, Napoleão teria do que se queixar em relação ao livro ora comentado. Em primeiro lugar, a História fez justiça em relação a Balzac, lhe restituindo a obra que este foi obrigado a vender, de modo que hoje em dia, no mundo inteiro, o livro de Máximas e Pensamentos de Napoleão é comercializado em edições que apontam Balzac como seu organizador. Ademais, pela classificação dos aforismos, divididos pelas distintas fases da Vida de Napoleão, Balzac sugere a melhor maneira de estudar-lhe a personalidade. Ao arguto olhar do autor não escapou que “o terrorista de 93 e o generalíssimo ficaram absorvidos pelo imperador, o governante desmentiu com frequência o governado, mas as palavras contraditórias que as frequentes crises lhe arrancaram, sim, revelam admiravelmente a enorme luta a que esteve condenado.” [3].
Balzac sabia ser impossível abarcar toda a personalidade de Napoleão em um único golpe de vista. O Imperador atuou com destaque em muitos seguimentos da vida do século XIX, alcançando notável distinção na maioria deles: general, político, administrador, legislador e reformador. Seu império se estendeu da Holada à Westfália, de Madrid ao Norte da Itália, por seu gênio e por sua espada, o antigo regime, as velhas ancestralidades feudais foram fortemente sacudidos em suas bases, tanto que Jean Tulard [4] assevera que, anos mais tarde, Carl Marx conferiu à Napoleão o título de grande destruidor do regime feudal alemão.
Uma edição francesa |
Nada obstante, essas máximas estão repletas de um fatalismo genuíno. O leitor se vê incapaz de desprezar, por exemplo, a genuína aptidão de moldar o próprio destino que Napoleão provou possuir. A forma com que o Imperador constrói cada um desses pensamentos também leva a marca do gênio. Nesse ponto, não seria nenhum absurdo dizer que Balzac prestava uma homenagem a um par, por certo que Napoleão era dono de um estilo literário único como descreve Gustave Lanson, citado por Euclides Mendonça em seu livro “A Força do Estilo de Napoleão”:
Ele [Napoleão] desenvolveu uma forma curta, brusca, tensa, nervosa admiravelmente expressiva, e seja por seu realismo, seja pela imagem que ele procurava passar de si mesmo, admiravelmente adaptado à alma elementar das multidões e das tropas. [6].
M. Émile Henriot, crítico literário do “Le Monde” de Paris, também citado no já referido livro de Euclides Mendonça, é categórico ao afirmar que Napoleão possuía “O dom do estilo, o talento de se expressar com vigor, com precisão, com elegância e colorido, na tonalidade e no ritmo inconfundíveis que lhe são peculiares. Tais atributos são próprios de um escritor nato.” [7].
Somados todos esses múltiplos ingredientes temos a fórmula que explica os motivos pelos quais a leitura dos aforismos de Napoleão ainda é atraente nos dias de hoje, bem como aqueloutros que confirmam a genialidade do escritor que os catalogou dois séculos atrás, já antevendo que seria “o mais belo livro” daquela e de outras épocas. Os sutis epigramas do Imperador despertam a imaginação do leitor que, por um momento, se julga capaz de empreender feitos equivalentes àqueles que um dia foram levados a efeito por ele. As breves sentenças proferidas pelo Vencedor de Marengo estão impregnadas de sua própria tragédia. A última delas, em especial, para citarmos um bom exemplo, dita pelo imperador deposto e exilado em Santa Helena, merece ser lida e relida, diversas vezes, e, quem sabe, recitada como um mantra em homenagem à frágil transitoriedade das coisas terrenas:
Novo Prometeu, vejo-me atado a uma rocha, onde um corvo [8] me rói as entranhas. Eu me havia apoderado do fogo celeste para dotar a França, e o fogo voltou à sua origem. Eis-me aqui. [9]..
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[1] ^ A Ordre National de la Légion d'Honneur, a condecoração honorífica que ainda hoje é a ordem máxima concedida pelo Governo francês, foi instituída pelo próprio Napoleão em 1802.
[2] ^ SCHILING, Voltaire. Balzac e o imperador. Disponível em: < http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/2006/03/07/000.htm>. Acesso em: 05 jan. 2011, às 03h00min.
[3] ^ BALZAC, Honoré de (Org.): Napoleão: Máximas e Pensamentos. Tradução de José Dauster. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. p, 16. Título original: Maximes et Pensées de Napoléon.
[4] ^ TULARD, Jean: Napoleão: O Construtor de uma nova Europa. Revista História Viva, São Paulo, ano 1, n. 1, p. 40-45, nov. 2003.
[5] ^ MACHIAVELLI, Niccolò. O Príncipe. Tradução de Cândida de Sampaio Bastos. Notas e comentários de Napoleão Bonaparte e da Rainha Cristina da Suécia. São Paulo: DPL, 2008, p. 17.
[8] ^ Naturalmente o Imperador deposto se refere a Hudson Lowe, seu odioso carcereiro em Santa Helena. Lowe foi um discreto oficial inglês que mereceu uma nota de rodapé nos anais da História (e, por ironia, outra no presente comentário) apenas por haver empregado os maiores e os mais vis esforços para tornar a estada de Napoleão em Santa Helena a pior possível. O imperador acusou Lowe de está-lo envenenando a mando e a soldo de seu maior inimigo: a Inglaterra, a pérfida Albion.
[9] ^ BONAPARTE, Napoleão. in: BALZAC, Honoré de (Org.): Napoleão: Máximas e Pensamentos. Tradução de José Dauster. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p, 113. Título original: Maximes et Pensées de Napoléon.