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segunda-feira, 30 de abril de 2012

Até quando, Catilina?




Marcus Tullius Cicero nasceu em Arpino, por volta de 106 a.C. Passou à História como uma das mentes mais atiladas da antiga Roma. Sua versatilidade fez com que seja ainda hoje reconhecido como grande advogado, orador sublime, político, magistrado, filósofo, linguista e tradutor.

Ana Teresa Marques Gonçalves [1], que elaborou estudo da obra De Legibus de Cícero [2] afirma a família do grande orador pertencia à ordem equestre, de maneira que, para ascender à ordem senatorial, Cícero foi submetido a uma cuidadosa e criteriosa educação.  Sabe-se que Cícero foi Questor na Sicília em 76 a. C. e Edil Curul em 70 a. C. No ápice de sua carreira política, Cícero foi Cônsul da República, mas foi degredado em 58 a.C.

Júlio César concedeu a anistia a Cícero que voltou a Roma. Sendo, inclusive, durante  a Ditadura de César que ele produziu várias de suas obras. Contudo, no período conturbado que se seguiu desde a morte de César até a ascensão de Otávio Augusto ao trono, o autor de De re publica foi morto a mando e a soldo de Marco Antônio, que em um gesto ao mesmo tempo bárbaro e simbólico mandou pregar as mãos que haviam escrito às novas Filipicas [3], juntamente com a cabeça, na rostra no Fórum Romano, o habitat natural de Cícero, local onde provavelmente proferiu as Catilinárias, as célebres orações acusatórias contra Catilina que ainda hoje ecoam mundo a fora.


Fábio da Silva Fortes [4], em seu artigo As Catilinárias de Cícero: uma análise discursiva [5], contextualiza e define as orações:

Os textos em questão são amplamente institucionais, foram proferidos em ocasiões oficiais no Senado Romano. A República romana, como atestam os historiadores antigos, entre eles Tácito e Salústio, teria se iniciado no ano de 509a.C. e se encerrado em 46a.C., com o início do período imperial, com Júlio César (44-46a.C.). Durante esse longo período, Roma, que nas origens era uma comunidade de pastores pobres que viviam às margens do Tibre, numa região denominada Lácio (Latium), aos poucos foi saindo da obscuridade para se tornar umas das maiores potências militares do Mediterrâneo, sobretudo após a expansão pelo território itálico, a anexação de Cartago com as Guerras Púnicas e os contatos comerciais com o oriente, através do domínio da Magna Grécia e, finalmente, de Atenas.  

O século primeiro antes da Era Cristã representa, por assim dizer, o auge da república romana, então politicamente organizada e dominada pelos optimates. Politicamente, Roma era governada por magistrados eleitos anualmente, que poderiam pertencer às categorias de “questor” (quaestor, idade mínima de 30 anos), “pretor” (praetor, idade mínima de 39 anos) e, finalmente, cônsul (consul, que eram apenas dois, com idade mínima de 42 anos e que detinham o poder máximo, o imperium). Para se chegar ao consulado, além de pertencer à nobreza (garantindo, assim, os votos da parcela da população que participava das eleições), o candidato cumpria um programa que passava pelas categorias menores, processo conhecido como cursus honorum. Cumpre destacar, ainda, dois aspectos relacionados: o fato de Cícero ser cônsul na ocasião em que foram proferidas as Catilinárias e o de ter chegado ao poder como homo novus, ou seja, oriundo de camadas populares.

Patere tua consilia no sentis?

Começa assim, o extenso libelo [6]:

 Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? quam diu etiam furor iste tuus eludet? quem ad finem sese effrenata iactabit audacia? Nihilne te nocturnum praesidium Palatii, nihil urbis vigiliae, nihil timor populi, nihil concursus bonorum omnium, nihil hic munitissimus habendi senatus locus, nihil horum ora vultusque moverunt? Patere tua consilia non sentis? constrictam omnium horum scientia teneri coniurationem tuam non vides? Quid proxima, quid superiore nocte egeris, ubi fueris, quos convocaveris, quid consilii ceperis, quem nostrum ignorare arbitraris? O tempora, o mores! senatus haec intellegit, consul videt: hic tamen vivit. Vivit? immo vero etiam in senatum venit, fit publici consilii particeps, notat et designat oculis ad caedem unum quemque nostrum. Nos autem, viri fortes, satis facere rei publicae videmur, si istius furorem ac tela vitemus. Ad mortem te, Catilina, duci iussu consulis iam pridem oporte bat, in te conferri pestem istam, quam tu in nos machinaris. An vero vir amplissimus, Scipio, pontifex maximus, Ti. Gracchum, mediocriter labefactantem statum rei publicae, privatus interfecit: Catilinam, orbem terrae caede atque incendiis vastare cupientem, nos consules perferemus? Nam illa nimis antiqua praetereo, quod C. Servilius Ahala Sp. Maelium, novis rebus studentem, manu sua occidit. Fuit, fuit ista quondam in hac re publica virtus, ut viri fortes acrioribus suppliciis civem perniciosum quam acerbissimum hostem coërcerent. Habemus senatus consultum in te, Catilina, vehemens et grave; non deest rei publicae consilium neque auctoritas huius ordinis: nos, nos, dico aperte, consules desumus.
 
Me, my friend?

Na tradução do Padre Antônio Joaquim [7]:

Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência? quanto zombará de nós ainda esse teu atrevimento? onde vai dar tua desenfreada insolência? É possível que nenhum abalo te façam nem as sentinelas noturnas do Palatino, nem as vigias da cidade, nem o temor do povo, nem a uniformidade de todos os bens, nem este seguríssimo lugar do Senado, nem a presença e semblante dos que aqui estão? Não pressentes manifestos teus conselhos? não vês a todos inteirados da tua já reprimida conjuração? Julgas que algum de nós ignora o que obraste na noite próxima e na antecedente, onde estiveste, a quem convocaste, que resolução tomaste? Oh tempos! oh costumes! Percebe estas coisas o Senado, o cônsul as vê, e ainda assim vive semelhante homem! Que digo, vive? antes vem ao Senado, é participante do conselho público, assinala e designa com os olhos, para a morte, a cada um de nós. E nós, homens de valor, nos parece ter satisfeito à República, evitando as suas armas e a sua insolência. Muito tempo há, Catilina, que tu devias ser morto por ordem de cônsul, e cair sobre ti a ruína que há tanto maquinas contra todos nós. Porventura o insigne P. Cipião, Pontífice Máximo, não matou a Tibério Graco, por deteriorar um pouco o estado da República? e nós devemos sofrer a Catilina, que com mortes e incêndios quer assolar o mundo? Passo em silêncio aqueles antiquíssimos exemplos, de quando C. Servílio Ahala matou com sua própria mão a Spúrio Melo, que procurava introduzir novidade. Houve antigamente na República esta fortaleza de reprimirem homens de valor com os mais severos castigos seja ao cidadão pernicioso que ao cruelíssimo inimigo. Temos contra ti, Catilina, decreto do Senado veemente e severo; não falta conselho à República; nós, abertamente o digo, nós somos os que faltamos.

Quo usque tandem?
E quem foi esse homem que Cícero queria ver morto? Quem foi esse cidadão cujo atrevimento foi objeto de tão veemente repúdio?

Lucius Sergius Catilina foi um político romano que viveu nos estertores da República. Filho de família patrícia, conquanto empobrecida, diz-se que iniciou-se em tenra idade na senda do crime e do vícios. Acusam-no, com frequência por haver apoiado o ditador Lúcio Cornélio Sila.

Todavia, difícil negar que trata-se de um personagem histórico envolto em mistério e contradição, pelo simples motivo de todas as raras fontes disponíveis sobre sua vida advirem de seus inimigos, tais como o próprio Cícero.

Em 64 a. C, Catilina concorreu às eleições para Cônsul da República, mas foi derrotado exatamente por Cícero. Não a esmo, é por essa época que surge a inimizade entre ambos. No dia seguinte ao ápice da disputa, momento mais dramático, após Cícero proferir a primeira das quatro orações do famoso discurso, Catilina foge de Roma.

Posteriormente, porém, decide regressar à Roma e pegar em armas, mas Cícero consegue capturar alguns de seus principais partidários e, mesmo contra a posição de César  no Senado, logra condena-los à morte sem julgamento. Na última batalha, Catilina enfrenta o exército do Senado em desvantagem de três para um. Seu cadáver foi encontrado no meio dos seus inimigos isolado na linha da frente. Em outra comprovação de sua bravura , nenhum corpo dos rebeldes foi encontrado com feridas nas costas, o que o fez merecedor do elogio do historiador Públio Aneu Floro, que disse sobre seu fim:

Bela morte, assim tivesse tombado pela Pátria.

Se a História fosse justa, a defesa de Catilina na tribuna só poderia ser feita por um Demóstenes. Por outro lado, seu extenso libelo é ainda hoje repetido e considerado uma obra prima da retórica. Contudo, como não é de justiça que as reputações são construídas, Catilina continua privado de qualquer vantagem que poderiam lhe conceder os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Talvez nunca saibamos que interesses se escondiam por trás das palavras imortais de Cícero em sua brilhante acusação contra Catilina. Culpado ou inocente, pouco importa, pois, talvez, por falta de um patrono à altura de seu oponente, Catilina, jamais obtenha sua absolvição.

O tempora, o mores!
Não obstante impossível negar que, mais de dois mil anos depois, as palavras de Cícero permanecem atualíssimas, encontrando novos Catilinas cada vez de mais desenfreada insolência. Novos facínoras, homens cujo braço da Justiça se mostra demasiado curto para alcançar, porquanto apesar de estarmos todos inteirados de suas ações (sempre), eles permanecem incólumes e, com suas condutas, teimam em abusar de nossa paciência. Oh tempos! oh costumes!

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[1] Professora de História Antiga e Medieval da Universidade Federal de Goiás. Mestre em História Social pela USP e Doutoranda em História Econômica na USP.

[2] GONÇALVES, Ana Teresa Marques. Lei e Ordem na República Romana: uma análise da obra De Legibus de Cícero. Artigo publicado na Revista Justiça e História. Rio Grande, v. 2, n. 3, p. 125-148, 2002.

[3] As Filípicas são um conjunto de discursos proferidos por Demóstenes contra Felipe II da Macedônia, cognominado o Caolho – pai de Alexandre, o Grande –, conclamando os atenienses a lutar contra sua tirania que, segundo o orador, representava uma ameaça à Hélade. Anos mais tarde, Cícero, escreveu também uma oração que, inspirada neste modelo, designou de Filípica, defendendo os direitos de Otávio Augusto após o assassinato de César, em detrimento das pretensões de Antônio.

[4] Doutorando em Linguística (Letras Clássicas) pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor Assistente de Língua Latina da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).

[5] FORTES, Fábio da Silva. AS CATILINÁRIAS DE CÍCERO: uma análise discursiva. Alétheia: Revista de estudos sobre Antigüidade e Medievo, Volume 1, Janeiro a Julho de 2010.
 
[6] Texto original em latim, disponibilizado pelo audacioso The Project Gutenberg.

[7] Atena Editora, 1938, disponível em: http://www.consciencia.org/catilinarias-de-cicero-oracao-i, acesso em 26 de abril de 2012, às 20h14min.