O Turbilhão Nervoso
Em Febre de bola encontramos
divertidas partículas da experiência universal do futebol. O jogo que domina as
mentes de milhões de seguidores e
fãs pelo mundo. O esporte que, em larga medida, ignora as fronteiras naturais
e, sobretudo, as fronteiras erigidas pelo homem. Em todos os continentes as
crianças correm atrás da bola e lançam suas bobinadas
certeiras enquanto gritam os nomes de seus heróis. A
magia, o espetáculo, a paixão do futebol. Tantos são os adjetivos e as fórmulas
utilizadas na tentativa de explicar o sentimento “sem
nome” do futebol. Porém – máxima ironia – o senhor Nick Hornby, a seu modo, resolveu explicar isso tudo escrevendo um
livro sobre ele mesmo.
Exatamente, conforme um grande amigo
afirmou, Febre de Bola
não é um livro sobre o futebol. Fever Pitch é o título original desse
livro em que o autor relata momentos de sua vida entre
1968 e 1992, tendo como pano de fundo o futebol. Na
verdade, posso dizer que vai um pouco além disso: o futebol para Hornby é muito
mais do que um simples cenário, o futebol é a sua obsessão.
O autor tinha 13 anos de
idade quando o mundo da bola se desvelou diante de seus olhos. A separação dos pais, justo naquela época, e as
complicações próprias da aurora da adolescência são os ingredientes que
transformaram a alma do autor em um campo fértil para o florescimento de uma paixão avassaladora, uma fuga, uma obsessão: o futebol.
A edição brasileira |
É curioso notar que quando o pai de Nick o convidou para que fossem assistir a um jogo juntos,
ele, com qualquer adolescente que se preze, de pronto
recusou. O jovem se considerava totalmente disposto a ir a qualquer lugar com o
pai, nas vezes em que ele aparecia para visitá-lo, “com exceção de todos os lugares que ele [o pai]
conseguia pensar.” Independente disso, ele se tornou um torcedor do
Arsenal, tradicional clube inglês.
No início, só o futebol mantém a
relação entre pai e filho, reduzindo as tensões, direcionando e
compatibilizando interesses. Sem o futebol, seus encontros seriam apenas os
jantares monótonos, sempre no mesmo restaurante, sem assunto para conversar.
Depois do futebol, naturalmente, não mais faltou assunto. Todos os amantes do
esporte bretão sabem o quão prolífero pode ser o mundo do futebol, até mesmo
quando a falta de assunto é o principal assunto. Talvez
essa última frase necessite de um bom exemplo para ficar
mais clara: pensem nos intervalos entre as temporadas e nas pré-temporadas que
os times realizam. O que há de interessante para se
comentar quando não há jogos do seu time e por toda parte tudo que se ouve são
as velhas especulações sobre transferências de jogadores.
Nessas épocas estéreis há algum assunto realmente interessante? Sim, para os
obsessivos sempre há. Diferente do meu tempo de garoto,
quando era necessário esperar a banca de jornais abrisse
de manhã para ler as novidades nas páginas cor-de-rosa do
Jornal dos Sports, hoje a informação e a desinformação circulam em tempo
real nos 140 caracteres das twittadas relâmpago dos jornalistas e de seus ávidos seguidores virtuais.
Nick Hornby em "casa", no Highbury |
Devidamente contextualizado com sua
realidade, é fácil identificar-se com o garoto Nick quando, por exemplo, ficamos
sabendo do nervosismo que sentia antes dos jogos, vezes em que “acordava com um turbilhão nervoso no
estômago”. Ou em sua estréia no estádio e o sobressalto ao ver tantas
pessoas felizes bradando palavrões e impropérios de toda
sorte. Assim como o jovem Nick, esse aspecto me impressionou em primeira visita
ao estádio. Assim como ele já tinha ouvido todos aqueles palavrões antes, mas
não entoados pelos adultos e não naquele volume.
Não poucos saberão precisamente do
que Hornby está falando quando conta a primeira grande decepção que sofreu no
futebol: final de um campeonato importante e o Arsenal,
franco favorito, perde o título para um clube de menor
expressão em pleno Wembley, um dos palcos clássicos do futebol em todo o mundo.
A dor da derrota foi atroz, mas o pior era o sentimento de
traição em relação às pessoas que antes haviam dito a ele que o Arsenal
venceria aquela disputa ou aquelas outras que não demonstravam entender a sua
relação com o seu time.
Isso não é tudo. À medida que a
narrativa avança, Hornby revela fatos e acontecimentos de
sua adolescência, do início da vida adulta, da universidade, dos
relacionamentos com as mulheres, com os amigos e do quanto o seu vínculo
extremo com o futebol influenciou a vida de todas as
pessoas que conviveram com ele. Suas referência cronológicas não remetem ao
calendário cristão. Antes, o que demarca sua trajetória são as temporadas do
Arsenal, anos em dobradinhas: 80/81, 86/87, 91/92, na forma do tradicional
calendário esportivo europeu. Ele não descreve o quarto, a sala ou a cozinha
das casas em que viveu, mas, por outro lado, o leitor lê as descrições de cada pedaço das arquibancadas de
Highbury, o estádio do Arsenal. Conforme avança em anos e experiência, surge a
necessidade de migrar para se acomodar em diversas partes
diferentes daquele pedaço de concreto tão querido.
Edição na língua original |
Falando em arquibancadas, logo se
pensa nos hooligans. Inegavemlemente o hooliganismo é um ponto sensível
do futebol europeu. Obviamente a violência das torcidas não é um problema
exclusivo do Velho Mundo, mas a
grande parte da inspiração dos arruaceiros de hoje partiu
das confusões registradas por lá, sobretudo na Inglaterra. O autor tocou nesse
assunto, mas eu diria que ele foi condescendente em relação os atos criminosos
e selvagens praticados pelos hooligans.
Ele até chega a repudiar essa violência, mas de forma
complacente, indulgente. Diria mais, as tentativas de
encontrar explicações para alguns massacres famosos em estádios europeus
envolvendo ingleses soaram como simples corporativismo. Afinal, é seguro dizer
que, no período de que trata o livro, qualquer
frequentador assíduo dos jogos do Arsenal, como o autor, para dizer o mínimo,
esteve muito envolvido nas atividades dos hooligans.
Por outro lado, o autor aparenta o
amor próprio pouco desenvolvido. Ele se define como um sofredor nato. Diz
claramente que os jogos do Arsenal sempre foram uma chatice sem fim. Torcer
para o Arsenal, na visão de Nick, é algo como uma tarefa de Sísifo: uma
eternidade de jogos muito ruins, repletos de
empates sem gols, derrotas amargas e poucas vitórias apertadas. Em realidade,
porém, entendi essa visão pessimista sobre o próprio time, mais como um recurso
literário do que como a realidade dos fatos. Afinal, como disse no início, o
foco da obra não é o futebol e sim a obsessão. E, a meu sentir, nenhuma
obsessão existe que não traga consigo algum sofrimento arraigado e persistente,
daí a necessidade em exagerar o “sofrimento” causado pelas alternâncias, pela
transitoriedade, e, acima de tudo, pelas injustiças do
mundo da bola, no qual sonhos acalentados por anos a fio
terminam abruptamente, no trágico e imprevisível voo de
uma Jabulani qualquer.
Enfim, já no primeiro parágrafo, eu
dizia que Hornby havia conseguido expressar o que é o futebol falando dele
mesmo. E o fez, descortinando seu universo permeado pelo futebol e, com isso,
estabeleceu pronto canal com outros obsessivos pela bola.
A compreensão é imediata e muitas vezes não é preciso sequer terminar a leitura
de uma frase ou capítulo para saber exatamente do que o
autor está falando. “Papo reto”, por assim dizer. De
obsessivo para obsessivo. Surge, então, sem esforço, o entendimento (pelo menos
quero crer que foi assim).
O livro de Nick é, muitas vezes um relato de obcecado para obcecado |
Antes de ler o livro, ouvi de alguns
leitores que me precederam que os signos lançados nas páginas de
“Fever Pitch” estariam fora do alcance da compreensão das mulheres. Não, não.
As mulheres possuem lá suas próprias obsessões. Nem sempre se trata do futebol,
mas o mundo é mesmo assim: ninguém é perfeito. Elas, claro está, poderiam
decifrá-lo (falo do livro) plenamente. Colheriam a essência da maneira mais
absoluta, bastando focar em outros paradigmas e imaginando exemplos
identificáveis para elas como o futebol é para a grande maioria dos homens. O
problema é que Nick Hornby é um grande bastardo inglês e um tremendo egoísta.
Tudo bem que ele escreveu essa jóia
divertidíssima, o Febre de Bola,
mas isso não redime o seu egocentrismo. O livro, por seu turno, é tão bom que,
se não soubesse que a melhor maneira de dizer obrigado a
um autor é ler o seu livro, poderia até dizer uma ou duas palavras para esse
inglês egoísta de uma figa. Claro que poderia e não
desconsidero nada disso. Todavia, estimo que ele não daria a mínima para nada
disso. Até porque quando escrevi essas linhas, era janeiro de
2011 e a temporada 10/11 estava em pleno andamento na Inglaterra: o Arsenal estava
apenas 4 pontos atrás do Manchester United, que era então o líder, de maneira que Nick Hornby tinha mais com o que se preocupar.