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domingo, 11 de março de 2012

Alea Jacta Est



Júlio César é um personagem que jamais poderá se despir por inteiro de sua larga máscara romântica. Seus renomados biógrafos Suetônio e Plutarco legaram ao mundo a fortíssima e indeteriorável imagem do Gaius Julius Caesar heróico, impiedoso, senhor da Gália e flagelo da república romana. O jovem que esteve do lado vencido de uma guerra civil e que, portanto, foi afastado do centro do poder, sendo, em seguida, sido feito cativo por corsários que exigiram 30 talentos de ouro pelo seu resgate. O jovem herói, entretanto, exigiu que o resgate não fosse menor que 50 talentos [1], afirmando que melhor que fosse assim, pois após ser libertado ele retornaria e crucificaria seus captores. Dito e feito: posto em liberdade, o jovem, não pela última vez, fez valer a palavra empenhada e ergueu diversas cruzes com piratas imolados em uma praia qualquer do Mediterrâneo.

Um início de carreira com muitos complicados entraves, que somados, talvez não permitissem aos seus contemporâneos antever o general e estadista brilhante que César se tornaria, anos mais tarde. Em 8 anos ele domou as tribos bárbaras e conquistou a Gália, submetendo Vercingentórix, o Rei de todos os gauleses, que foi conduzido e sacrificado diante das multidões romanas que aplaudiram César em seu grande Triunfo.



César vivido por Ciarán Hinds na série Roma de 2005
Não obstante, antes de poder desfilar em toda a sua glória perante seu povo, César se viu obrigado a ultrapassar aquele que talvez tenha sido seu maior obstáculo, a tal adversidade amplamente reconhecida como ponto crítico em sua carreira: marco físico, mas defeso segundo a vontade soberana do povo romano; ao mesmo tempo obstáculo psicológico e moral, diante do qual, considerando o que representava a transgressão, César foi assaltado pela incerteza. Napoleão, séculos mais tarde, defendeu que nesta ocasião, pela hesitação, César não foi César [2]. Sim, o herói titubeou ao chegar, no comando de seus invencíveis veteranos da campanha da Gália, às margens do Rubicão, curso d’água que estabelecia o perímetro urbano da antiga Roma, o qual, ao general ou cônsul que estivesse a frente de seus exércitos, era defeso transpor. O Rubicão, porém, não deteve César por muito tempo, eis que seu espírito indomável o impeliu adiante, após proferir a célebre sentença: alea jacta est.

A sorte, de fato, estava lançada, contudo pode-se dizer que no primeiro ato a roda da fortuna girou a favor do iconoclasta César e, assim, começava a fase mais interessante de sua carreira. Deflagrou-se a guerra civil contra Pompeu e seus sectários. Seguindo-se, não sem muito sangue romano derramado pelos próprios romanos, a vitória de César em Farsala e – o que pareceu mais surpreendente - a primeira derrota de um Cipião[3] em solo africano. César marcha até o Egito onde tem o dissabor de receber a cabeça de seu antigo genro, Pompeu, em uma bandeja, mas também tem o prazer de travar conhecimento com a enigmática Cleópatra. Um encontro que em tudo agradou a César, por certo que a princesa egípcia, a quem ele apóia na disputa pelo trono com o irmão, era descendente de Ptolomeu, um dos bravos que cavalgou ao lado Alexandre e fundou uma dinastia às margens do Nilo. Consta que, muito antes de retornar a Roma e ser brutalmente assassinado em pleno senado romano, César não se furtou a verter copiosas lágrimas aos pés do túmulo de Alexandre, por supostamente não estar a altura de seu herói mesmo então já estando em idade superior àquela que o filho de Felipe II ostentava ao morrer.


Chegamos ao ponto na biografia de César em que se concentra a tragédia de Shakespeare que ousamos comentar: nos idos de março, quando ocorreu o seu brutal assassinato. O herói foi assassinado, mas não lhe foi dado morrer. Otávio, seu augusto sobrinho, adotou o nome César que passou a ser sinônimo de soberano não apenas em latim, preservando esta característica até os dias atuais: Czar e Kaiser, os termos utilizados para designar os imperadores da Rússia e da Alemanha são, pois, palavras derivadas de César.

Ocorre que esse colossal Júlio César não é a personagem principal da tragédia que leva seu nome. Antes o bardo Willian Shakespeare, em “Júlio César” trata de Brutus.

IMP•C•IVLIVS•CÆSAR•DIVVS
Sim, os holofotes aqui estão todos sobre Marcus Junius Brutus, o filho da fina flor da aristocracia romana, descendente de outro Brutus que salvou a república das garras de um tirano ancestral que também ousara atentar contra o governo do povo. Brutus que era amado por César, mas que ouvia Cássio.

No medievo, o poeta Dante Alighieri, houve por bem colocar Cássio e Brutus, bem acompanhados por Judas Iscariotes, lado a lado no último círculo do inferno, em um lugar reservado para os traidores e que tinha os três, os maiores entre todos os traidores, como moradores ilustres.

E Shakespeare soube explorar como poucos o campo fértil das seriíssimas reflexões e debates que Brutus travou consigo mesmo, quando percebeu que a ele se impunha a inglória missão de salvar a república pagando o altíssimo preço do sacrifício daquele dileto amigo chamado César. As punhaladas desferidas em César eram expressão de uma moral que pairava acima de Brutus, de tal maneira que não pôde desvencilhar-se da força inexorável dessa grande missão, à qual ele estava ligado pelos robustos laços de sua ancestralidade.

Assassinato de César, 1865, Karl Theodor von Piloty, Museu do Estado da Baixa Saxônia, Hanôver


Acerca o papel de Brutus na tragédia, filio-me à persuasiva argumentação contida no comentário[4] do camarada Nietzsche:
Em Louvor de Shakespeare. – A coisa mais bela que eu saberia dizer em louvor do homem Shakespeare é esta: ele acreditou em Brutus e não lançou o menor grão de suspeita sobre esse tipo de virtude! A ele dedicou sua melhor tragédia – que ainda hoje é conhecida pelo título errado –, a ele e à mais terrível quintessência de uma moral elevada. Independência da alma! – é disso que se trata ali! Nenhum sacrifício pode ser demasiado grande: é preciso ser capaz de sacrificar-lhe até o mais querido amigo, seja ele o homem mais esplêndido, ornamento do mundo, gênio sem igual – quando se ama a liberdade como sendo a liberdade das grandes almas e ele põe em perigo essa liberdade: desse modo deve ter sentido Shakespeare! A altura em que ele coloca César é a maior honra que podia prestar a Brutus: apenas assim ele dá proporções enormes ao problema interior deste, bem como à força psíquica que era capaz de cortar esse nó! – E foi realmente a liberdade política que fez esse poeta simpatizar com Brutus – que o tornou cúmplice de Brutus? Ou a liberdade política foi apenas um símbolo para algo inexprimível? Achamo-nos talvez diante de um evento obscuro que permaneceu desconhecido, uma aventura da própria alma do poeta, da qual ele só quis falar mediante sinais? O que é a melancolia de um Hamlet, comparada à melancolia de um Brutus? – e talvez Shakespeare conheça esta, como aquela, por experiência própria! Talvez ele tivesse, como Brutos, sua hora escura e seu anjo mau! – Mas quaisquer que tenham sido as semelhanças e os laços secretos: ante o personagem e a virtude de Brutus Shakespeare se prostrou e se sentiu indigno e distante: – ele dá testemunho disso na tragédia. Duas vezes um poeta é apresentado nela, e nas duas vezes é vertido sobre ele um desprezo tão impaciente e definitivo, que isto soa como um grito – o grito do auto-desprezo. Até mesmo Brutos perde a paciência quando surge o poeta, enfatuado, patético, impertinente como costumam ser os poetas, um ser que parece transbordar de possibilidades de grandeza, também de grandeza moral, mas que na filosófica dos atos e da vida raramente atinge sequer a integridade comum. “Se ele conhece o tempo, eu conheço seus humores – fora com o palhaço!” – grita Brutus. Traduza-se isso de volta na alma do poeta que o criou.


Parece, portanto, acertado afirmar que Brutus é o verdadeiro protagonista, pois a ele cabe a ação mais dramática, bem como conviver depois com suas paixões e seus remorsos revolvendo-se e explodindo internamente como se um novo Vesúvio se lhe surgisse das entranhas.

O Triunfo de César ao regressar vitorioso da Gália e de sua guerra com Pompeu, na série Roma
Seja na rápida leitura conquistada a custo nos raros momentos de folga de nosso século de múltiplas ocupações, seja sendo apreciada, como de fato foi, pelo público de pé de fronte aos teatros de madeira da era elisabetana, podemos tomar como certa uma breve sentença: trata-se de uma obra atemporal, mil vezes sutil e sempre recomendada.
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[1] ^    As fontes históricas divergem sobre os valores e sobre as taxas de conversão, mas há um consenso no sentido de que César teria aumentando consideravelmente a primeira oferta dos piratas. A história é contada com todas as cores na série O Imperador, de Conn Iggullden, o brilhante romance sobre a vida de César.


[2] ^    “[...] César hesitou às margens do Rubicão, não foi ele mesmo naquele dia. Uma das grandes virtudes militares é jamais hesitar quando se precisa agir” (Napoleão Bonaparte BONAPARTE, Napoleão. in: BERTAUT, Jules (Org.): Napoleão Bonaparte: Manual do líder. Tradução de Júlia da Rosa Simões. Porto Alegre: LP&M, 2010, p. 67. Título original: Manuel du chef: Aphorismes chosis et préfacés par Jules Bertaut.)


[3] ^    Havia uma lenda que um Cipião jamais seria derrotado em solo africano, pois foi justamente na África, em Zama, que Cipião venceu o maior adversário que Roma já conheceu, o general cartaginês Aníbal Barca, o que lhe rendeu o epíteto de o Africano. César, porém, ignorando o mito, venceu Metelo Cipião na batalha de Tapso realizada perto da cidade de Tapso (Thapsus), moderna Ras Dimas, na Tunísia. Metelo Cipião comandava ao lado de Catão, o Jovem, a facção conservadora do senado romano conhecida como Optimates e era descendente do grande Cipião, o Africano.


[4] ^    NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução, notas e prósfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 122-123. Título original: Die fröhliche Wissenschaf. La gaya scienza.